Incêndios na Califórnia anunciam chegada de nova era do fogo

Incêndio florestal consome casa no norte da Califórnia: sinais de uma nova Era do Fogo (Foto: Josh Edelson/AFP)

Para especialista, mudanças climáticas não são as únicas responsáveis pelas queimadas; outras ações humanas também deixam fogo fora de controle

Por The Conversation | ODS 13ODS 15 • Publicada em 17 de setembro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 22 de setembro de 2020 - 09:45

Incêndio florestal consome casa no norte da Califórnia: sinais de uma nova Era do Fogo (Foto: Josh Edelson/AFP)

Stephen Pine*

Outro outono no Hemisfério Norte, mais incêndios, mais refugiados e casas incineradas. Para a Califórnia, as chamas se tornaram as cores do outono. (Há temporadas devastadoras de incêndio no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia brasileiras, na Argentina, na Indonésia, na Grécia e na Bulgária – nota do tradutor)**

O fogo de queima livre é um incitamento imediato ao caos, já que suas tempestades de brasa consumindo paisagens. Mas, nas mãos dos humanos, a combustão também é a causa mais profunda de todo esse fogo. As sociedades modernas estão queimando paisagens líticas (rochosas) – biomassa antes viva e agora fossilizada em carvão, gás e petróleo – o que está agravando a queima de paisagens vivas.

A influência não vem apenas das mudanças climáticas, embora isso seja claramente um fator. A transição para uma civilização de combustível fóssil também afeta a forma como as pessoas nas sociedades industriais vivem na terra e que tipo de práticas de uso do fogo são adotadas. Mesmo sem as mudanças climáticas, teríamos um sério com incêndios descontrolados. As agências agrárias dos EUA mudaram suas políticas para restabelecer o conceito de bom fogo há 40 a 50 anos, mas, fora de algumas localidades, isso não foi alcançável em larga escala.

As paisagens líticas foram exumadas e não estão mais embaixo das paisagens vivas.  Com efeito, uma vez liberado, o lítico se sobrepõe aos vivos e os dois tipos diferentes de incêndio interagem – às vezes competem e às vezes conspiram. Como as linhas de força que provocaram tantos incêndios florestais, os dois incêndios estão se cruzando, com consequências letais.

Como historiador do fogo, sei que não é apenas um fator que o guia. As chamas transformam seus arredores. O fogo é um carro sem motorista que dispara pela estrada interagindo com tudo o que está ao seu redor. Às vezes, enfrenta uma curva acentuada chamada mudança climática. Às vezes, um cruzamento complicado onde a paisagem urbana e o campo se encontram. Às vezes, são os perigos da estrada deixados por acidentes anteriores, como corte de madeira, grama invasiva ou ambientes pós-queimados.

As mudanças climáticas atuam como um intensificador de desempenho do fogo e, compreensivelmente, chama muita atenção porque é um fenômeno global e seu alcance vai além das chamas para o aquecimento dos oceanos, extinções em massa e outros efeitos colaterais. Mas a mudança climática não é suficiente por si só para explicar a praga das mega-incêndios. O clima é somatório de muitos fatores; o fogo também. A interação entre os dois dificulta a atribuição de causa e efeito.

Em vez disso, considere o fogo em todas as suas manifestações como uma narrativa informativa. A inflexão crítica nos tempos modernos ocorreu quando os humanos começaram a queimar biomassa fossilizada em vez de biomassa viva. Isso desencadeou uma “transição pírica”, semelhante à transição demográfica que acompanha a industrialização:as populações humanas primeiro se expandem, depois diminuem. Algo semelhante acontece com a população de incêndios – à medida que novas fontes de ignição e combustíveis se tornam disponíveis ao mesmo tempo que as antigas persistem.

Fumaça alaranjada das queimadas cobre Golden Gate, em San Francisco: novas fontes de ignição e combustíveis disponíveis ao lado de antigas fontes de fogo (Foto: Harold Pustic/AFP)
Fumaça alaranjada das queimadas cobre Golden Gate, em San Francisco: novas fontes de ignição e combustíveis disponíveis ao lado de antigas fontes de fogo (Foto: Harold Pustic/AFP)

Nos Estados Unidos, essa transição desencadeou uma onda de incêndios monstruosos que percorreram os trilhos do assentamento – incêndios em uma ordem de magnitude maior e mais letal do que os das últimas décadas. O desmatamento e o corte de madeira alimentaram conflagrações em série, que explodiram no final do século 19 e no início do século 20, as últimas décadas da chamada Pequena Idade do Gelo. Foi um período de destruição catalisada pelas chamas que inspirou a conservação patrocinada pelo estado e a determinação de eliminar as chamas da queima livre. Espalhou-se a crença, liderada por silvicultores, de que o fogo ao ar livre poderia ser enjaulado, como acontecia em fornalhas e dínamos.

Afinal, da mesma forma que a substituição tecnológica (pense em trocar velas por lâmpadas) e a supressão ativa reduziram a presença de chamas abertas, a população de incêndios caiu a um ponto onde o fogo não poderia mais fazer o trabalho ecológico necessário. Enquanto isso, a sociedade se reorganizou em torno dos combustíveis fósseis, adaptando-se à combustão de paisagens líticas e ignorando o fogo latente nas vivas.

Agora as fontes sobrecarregam os sumidouros: muita biomassa fóssil é queimada para ser absorvida dentro dos limites ecológicos antigos. Os combustíveis na paisagem viva se acumulam e se reorganizam. O clima está confuso. Quando a chama retorna, como deve, vem como um incêndio selvagem e descontrolado.

Bem vindo ao Piroceno

Amplie um pouco a abertura e podemos imaginar a Terra entrando em uma Era do Fogo comparável às eras glaciais do Pleistoceno, completada com o equivalente pírico de mantos de gelo, lagos pluviais, planícies aluviais periglaciais, extinções em massa e mudanças no nível do mar. É uma época em que o fogo é o motor principal e sua principal expressão. Até a história do clima se tornou um subconjunto da história do fogo. O poder de fogo da humanidade assegura o Antropoceno (ponto em que a humanidade se torna uma força geológica a moldar a paisagem global e a evolução do planeta), que é, na verdade, o resultado não apenas da intromissão humana, mas de um tipo particular de intromissão por meio do monopólio da espécie humana sobre o fogo.

A interação desses dois reinos de fogo não foi muito estudada. Tem sido um exagero incluir totalmente as práticas do fogo humano na ecologia tradicional. Mas o fogo industrial, ao contrário do fogo na paisagem, é apenas um produto da manipulação humana e, portanto, está fora dos limites da ciência ecológica.  É como se o poço intelectual não pudesse suportar o novo “reino do fogo” assim como a natureza não pode mais suportar suas emissões de carbono.  Ainda assim, na humanidade – a espécie-chave para o fogo na Terra – essas duas arenas de queima terrestre (o fogo humano e o industrial), como a fumaça de fogos separados formados em uma única coluna de transmissão, estão se fundindo. A troca entre esses fogos – esse dar e receber entre eles – está remodelando o planeta.

No mundo desenvolvido, a combustão industrial organiza a agricultura, constrói ambientes, configurações periurbanas e reservas para as terras selvagens – todos os materiais disponíveis para o fogo na paisagem. As sociedades até combatem o incêndio paisagístico com a força contrária do fogo industrial na forma de bombas, motores, aeronaves e veículos para transportar integrantes das forças de combate aos incêndios. A interação dos dois reinos de fogo determina não apenas o que é queimado, mas também o que precisa ser queimado e o que não é. Isso muda o caminho do fogo.

Some todos os efeitos diretos e indiretos – as áreas em chamas, as áreas que precisam ser queimadas, os impactos externos, com bacias hidrográficas e de ar danificados, o desmoronamento de biotas, o poder das mudanças climáticas, aumento do nível do mar, a extinção em massa, a perturbação da vida humana e de habitats naturais – e você tem uma pirogeografia que se parece assustadoramente com uma era do gelo adaptada para o fogo. Você tem um Piroceno. Os contornos dessa época já estão se tornando visíveis através da fumaça.

Se você duvida, pergunte à Califórnia (ou a Amazônia ou ao Pantanal – nota do tradutor)

*Professor Emérito da Escola de Ciências da Vida, da Universidade do Estado do Arizona (EUA)

** Publicado originalmente em novembro de 2019, atualizado em 11 de setembro de 2020

(Tradução: Oscar Valporto)

The Conversation

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