O futuro pós-capitalista já
começou, decreta livro

Jornalista britânico aponta produção colaborativa como alternativa

Por Claudia Sarmento | Economia VerdeODS 12ODS 14ODS 17 • Publicada em 12 de novembro de 2015 - 07:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 15:48

Cartaz no Ocupy Wall Street: movimento se espalhou pelos EUA
O touro de Wall Street em Nova York: símbolo do capiallismo
O touro de Wall Street em Nova York: símbolo do capitalismo

O jornalista britânico Paul Mason estava na porta do Lehman Brothers quando o banco declarou falência em setembro de 2008. Editor de economia do Channel 4 News, um dos principais telejornais da TV britânica,  e colunista do jornal “The Guardian”, ele registrou a cena dos funcionários que haviam acabado de perder seus empregos deixando o prédio e vagando por Wall Street com seus pertences em caixas de papelão. Era o início do pandemônio financeiro que sacudiria as maiores potências econômicas do mundo e cujas sequelas econômicas e sociais continuamos a sentir. Desde então, Mason pouco parou na Inglaterra. Percorreu o mundo para cobrir o que define como aftershocks (aqueles abalos sísmicos que se seguem a um grande terremoto) da catástrofe financeira, do movimento Occupy Wall Street à Primavera Árabe, do desemprego em massa na Espanha à depressão grega, geralmente com o foco voltado para gerações de jovens desiludidos, seja nas ruas do Brasil ou na guerra civil da Ucrânia. O balanço do que viu o levou a concluir o seguinte: o capitalismo já não pode se reiventar seguindo as mesmas regras que sempre sustentaram o sistema. Para ele, estamos entrando numa nova era, a do pós-capitalismo.

No recém-lançado livro “PostCapitalism: a guide to our future” (“Pós-capitalismo: um guia para nosso futuro”, ainda não traduzido para o português), Mason provoca a esquerda e a direita, argumentando que existe uma alternativa ao neoliberalismo, e ela não tem nada a ver com o formato conhecido de socialismo e intervenção do Estado. Para ele, o caminho para uma economia sustentável já começou a ser traçado porque as novas tecnologias da informação não são compatíveis com os modelos de negócios que pautaram o desenvolvimento da humanidade nas últimas décadas.

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Estão surgindo bens, serviços e organizações que não respondem mais ao que é ditado pelo mercado e pela hierarquia gerencial. O maior produto de informação do mundo _ a Wikipedia _ é feito de graça por 27 mil voluntários, abolindo o negócio da enciclopédia e privando a indústria da publicidade de um faturamento estimado em US$ 3 bilhões

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Mason acredita que a internet, ou melhor, a sociedade em rede, permite a emergência de atividades que transcendem o modelo baseado em hierarquias e monopólios. São novas possibilidades de trabalho ou de pura troca de informação que desafiam as regras tradicionais do mercado. “Vemos a emergência espontânea de uma produção colaborativa”, diz ele, acresentando: “Estão surgindo bens, serviços e organizações que não respondem mais ao que é ditado pelo mercado e pela hierarquia gerencial. O maior produto de informação do mundo _ a Wikipedia _ é feito de graça por 27 mil voluntários, abolindo o negócio da enciclopédia e privando a indústria da publicidade de um faturamento estimado em US$ 3 bilhões”, exemplifica. Em sua visão, é exatamente esse fluxo livre de informação que estaria balançando os alicerces do comércio capitalista.

O livro, que incluiu uma extensa pesquisa sobre diferentes teorias econômicas, irritou os defensores do neoliberalismo e, certamente, parece exagerado em alguns pontos, como a argumentação de que o capitalismo chegou a seu limite máximo de adaptação e já não tem solução. Mas, apesar de ressalvas, a obra foi considerada importante por diferentes críticos dos principais jornais britânicos por provocar um debate econômico mais profundo sobre a revolução tecnológica e sobre como o planeta poderia ficar menos desigual e maltratado se pudéssemos usar todo o potencial de conexão da rede para redesenhar as noções vigentes de produção, valor e relações de trabalho. Nas redes sociais, a hashtag #postcapitalism (pós-capitalismo) também tem provocado discussões acaloradas, impulsionando o livro ao primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon entre as obras de economia internacional. Para Mason, a função do Estado deveria ser fornecer estrutura e serviços básicos para que os indivíduos possam inovar, graças aos benefícios trazidos pela tecnologia, sem ter que se submeter aos desmandos do mercado.

A ideia de Mason é utópica? Por enquanto sim, porque afinal de contas a revolução digital não apenas possibilita projetos sem fins lucrativos e sem um único dono, como a Wikipedia, como também fortalece o poder de novos impérios que em nada sugerem a destruição do capitalismo, como Google, Facebook e Apple, só para mencionar os mais óbvios. O autor, porém, acredita que gigantes tecnológicos não conseguirão monopolizar a troca de conteúdo para sempre. Nada disso vai se resolver de uma hora para outra, claro, mas Mason cita números da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para lembrar que precisamos ter uma certa pressa em mudar o rumo das coisas ou vamos deixar um cenário caótico para as próximas gerações: de acordo com relatório da entidade divulgado em 2014, a economia mundial terá baixos índices de crescimento nos próximos 50 anos devido à desaceleração das economias emergentes, enquanto as desigualdades sociais vão crescer 40%. O resultado, em meio à queda de investimentos públicos, redução de salários e envelhecimento populacional, pode ser catastrófico, com mais conflitos, extremismo, migração descontrolada, governos arbitrários e aceleração das mudanças climáticas.

Mas antes que o leitor entre em depressão profunda, o jornalista aponta três fatores que fazem do momento atual a hora certa para buscar saídas mais sustentáveis que possam alterar esse ritmo catastrófico previsto pela OCDE. Primeiro, diz ele, novas tecnologias reduzem a necessidade de trabalho, ou seja, máquinas substituem empregos, além de embaralhar as fronteiras entre ofício e lazer. Em segundo lugar, a facilidade de acesso à informação corrói a capacidade do mercado de estipular preços. Se todo conteúdo pode ser teoricamente copiado e colado, a tendência é que seu preço fique próximo de zero. E, por fim, atividades econômicas não tradicionais começam a se proliferar como resultado da crise financeira global, entre elas moedas paralelas, cooperativas, bancos de tempo (que promovem a troca de serviços entre indivíduos sem a utilização de dinheiro) e práticas de autogestão. “Novas formas de propriedade, novas formas de concessão de empréstimos, novos contratos legais: toda uma subcultura emergiu ao longo dos últimos dez anos, o que a mídia apelidou de ‘economia compartilhada’. Termos da moda, tais como ‘bens comuns’ e ‘produção entre pares’, são atirados por todos os lados, mas poucos se preocuparam em perguntar o que isso significa para o próprio capitalismo”, escreve Mason.

Além disso, como as pessoas estão cada vez mais conectadas, revoluções, revoltas e protestos acabam explodindo mesmo quando espaços como Facebook e Twitter são censurados, lembra ele. A tecnologia reforça o apetite por mudanças, principalmente entre os jovens que não conhecem a vida sem celular. Foi assim no Irã e no Egito, por exemplo. É verdade que as revoltas do século 21 não foram adiante (“A Primavera Árabe foi suprimida, como no Egito e no Bahrain, ou engolida pelo Islamismo, como na Líbia e na Síria”, admite Mason), mas ficou comprovado que tecnologias digitais nas mãos de massas insatisfeitas podem alterar o equilíbrio de poder por meio de movimentos que nada têm a ver com o antigo conceito de luta de classes. Ou seja, estamos num momento de transição, no qual crise e avanços tecnológicos se combinam de forma inédita, tornando impossível qualquer previsão sobre o futuro. Segundo Mason, é uma revolução tão profunda quanto a ocorrida há 500 anos, na transição do feudalismo para o capitalismo que vem, desde então, atravessando diferentes ciclos e se adaptando.

Cartaz no Ocupy Wall Street: movimento se espalhou pelos EUA

Aí entra a tese principal do livro: o capitalismo teria chegado agora ao limite máximo da sobrevivência, permitindo que o mundo se dê ao direito de imaginar um outro tipo de ciclo econômico, mais solidário que o atual. A Grécia forneceu, recentemente, exemplos de alternativas encontradas por cidadãos comuns para driblar a recessão, lembra o autor, mencionando pelo menos 70 projetos e centenas de pequenas iniciativas, como transportes comunitários e jardins de infância gratuitos. “Para a economia dominante, tais coisas mal podem ser classificadas como atividade econômica, mas é esse o ponto. Elas existem porque utilizam, mesmo que de forma hesitante e ineficiente, a moeda do pós-capitalismo: tempo livre, atividade em rede e serviços gratuitos”, sustenta ele.

Dividir o uso de bens e serviços não é um conceito recém-nascido, mas os avanços tecnológicos ampliam as novas formas de consumo a um nível sem precedentes, causando rupturas e, naturalmente, resistência. Basta pensar no Uber, que é bom para quem precisa se locomover por áreas urbanas e para quem tem carro particular e quer trabalhar como motorista, sem precisar de intermediários. Mas nada é tão simples assim. Não é à toa que o aplicativo é motivo de protestos em várias cidades do mundo, do Rio a Londres, onde os eficientes e lendários black cabs não aceitam a concorrência de um serviço que não é regulado pelo Estado e não se submete às mesmas regras trabalhistas e de segurança que os taxistas tradicionais.

Resumindo: economia compartilhada pode mudar o mundo, mas ela tem várias formas e a discussão é complexa. Se levará a uma ordem econômica global mais justa e sustentável, ninguém pode dizer. A favor de Mason pesa a honestidade com que admite implicar com o neoliberalismo. Ele não faz esforço algum para disfarçar suas ideologias, mas por ser uma voz influente e respeitada, de alguém que já percorreu meio mundo,  seu livro não foi ignorado nem pelos que discordam de suas posições. Tampouco é um anarquista. Acredita que inovações terão que ser combinadas com a presença de governos e corporações. Ele sabia que não haveria consenso em relação a suas ideias e nem era isso o que buscava. Quis provocar um debate sobre o futuro, com base no potencial de novas vozes e modelos. Está conseguindo e é fundamental acompanhar a briga entre os que acreditam que a tecnologia pode nos salvar e os que temem que ela apenas nos manterá rodando em círculos.

 

 

Claudia Sarmento

Jornalista, PhD em Mídia e Comunicação pela Universidade de Westminster e professora visitante do Departamento de Humanidades Digitais do King's College de Londres.

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