A Passarela do Samba, neste século 21. já assistiu astronautas voando, tapetes mágicos levitando, telas de LED, drones, todos os tipos de movimentos na águia da Portela e em outros carros alegóricos: efeitos especiais cinematográficos já fazem parte do espetáculo da Marquês de Sapucaí onde muitos enredos passaram a apontar para o futuro, fugindo da tradição inicial das escolas de samba de apresentar temas ligadas ao passado, fatos e personagens históricos ou sagas mitológicos e lendas folclóricos.
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Fazem exatamente quatro décadas que o futuro desembarcou na Passarela: sob um sol escaldante daquela manhã de segunda-feira, 18 de fevereiro de 1985, a Mocidade Independente de Padre Miguel entrou na Passarela do Samba com robôs inspirados no R2-D2 do filme Guerra nas Estrelas na Comissão de Frente para desfilar seu enredo “Ziriguidum 2001, Um Carnaval nas Estrelas”, uma ousadia da mente criativa do seu carnavalesco Fernando Pinto. As escolas de samba, que tinham começado a retratar o presente, com temas críticos e sociais, nos derradeiros anos da ditadura, abriram seus olhos para enredos futuristas, a partir do exuberante desfile da Mocidade, campeã do Carnaval 1985, o segundo disputado na nova Passarela do Samba da Marquês de Sapucaí.
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Este (então jovem) repórter viu aquilo surpreso como a maioria do público. Discos voadores, astronautas, seres espaciais: tinha tudo isso e muito mais entrando pela avenida naquela manhã. Era a promessa de Fernando Pinto já na sinopse do enredo. “A Nave-Mãe da Mocidade Independente partiu para o espaço sideral levando com seu samba, toda alegria, beleza e as cores do nosso carnaval. Em todos os planetas por onde passou foi plantando as nossas raízes carnavalescas e os povos de todo universo, foram influenciados pela nossa cultura popular, passando também a festejar à Momo. Era o grande dia do Carnaval Universal”, escreveu.
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Veja o que já enviamosA jornalista e pesquisadora Bárbara Pereira conta em seu livro – Estrela que me faz sonhar – sobre a Mocidade que o carnavalesco batizou, inicialmente, o enredo de ‘Requebros imediatos do Terceiro Grau’ (outra inspiração cinematográfica) mas, felizmente, foi convencido a trocar por diretores da escolas. Nas fofocas da Sapucaí, diziam que havia reclamações na escola das baianas interplanetárias com antenas em seus chapéus e da fantasia de astronautas, com capacetes, da bateria. Mas tudo brilhava em prata e branco ao sol daquela manhã, como calculara Fernando Pinto ao preparar suas alegorias e desenhar suas fantasias.
Com o tempo, a nossa memória fica cada vez mais baseada em impressões: do desfile campeão, lembro bem dos robozinhos da comissão de frente (com Castor de Andrade por perto, com uma camisa social verde empapada de suor, de gravata branca mas sem o paletó), das baianas e de um comentário jocoso sobre as “antenas de formiga”, da bateria (talvez por conta da monumental Monique Evans) e desse mar prata e branco. Também recordo que o Ziriguidum 2001 veio logo depois da Mangueira, que tinha baianas com enormes chapéus atrapalhando a evolução e passou também já com dia claro. Em 1985, era eu um novato nos desfiles: guardei a impressão de que aquele era diferente de todos os outros e tomei muitas notas sobre o enredo futurista da Mocidade.
Nem sei se cheguei a escrever sobre ele: trabalhava então numa revista semanal que nem chegou ao fim do século 20. Mas, ao escrever agora, a pesquisa me leva a genialidades de Fernando Pinto que talvez estivessem naquelas notas: no desenvolvimento do enredo, vinham alas como ‘Afoxé dos Filhos de Plutão, ‘Júpiter e os fandangos siderais’, ‘Reisado de Netuno’, ‘Corso dos mares da Lua’, ‘Caboclinhos marcianos’, ‘Rancho da Primavera de Vênus’, ‘Frevo uraniano’, ‘Boi-robô de Saturno’ e ‘Pirilampos de Mercúrio’. Fernando Pinto cumpriu a promessa, feita na sinopse, levando “Pierrôs Lunares, Colombinas Siderais, Arlequins Cósmicos”.
O Ziriguidum 2001 e seu samba-enredo cantado até hoje em quadras e rodas – “Sou a Mocidade/ sou Independente/ Vou a qualquer lugar” – pintaram um verde-e-branco neste meu coração salgueirense e passei a acompanhar a escola de perto, guardando na memória um tanto dos desfiles de 1987 – Tupinicópolis, o último de Fernando Pinto, antes de morrer num acidente de carro – e os da década de 1990, já criados pelo talento de Renato Lage. Estava na cobertura dos títulos de 1990 (Vira, Virou, a Mocidade Chegou) e 1991 (Chuê, Chuá) e também de 1997 (Criador e criatura), todos com Lage de carnavalesco e uso de tecnologia no desfile. Tinha Frankenstein e Robocop no Criador e Criatura – o espírito de Fernando Pinto seguiu vivendo na Mocidade.
Quando 2001 chegou, outro gênio do Carnaval, Joãosinho Trinta, fez um homem voar na Sapucaí: o dublê Eric Scott, de uma empresa americana, usou uma mochila com propulsão a jato para ir ao céu no desfile da Grande Rio. Neste século, os efeitos especiais já fizeram até nevar: teve patinação no gelo, teve cascatas de água, teve todo tipo de uso de vídeos e luz de LED, teve uma pequena águia da Portela voando e outras águias gigantes evoluindo de diferentes maneiras. No seu último título, em 2017, a Mocidade fez um Aladim voar em seu tapete mágico.
Muita coisa mudou nesses 40 anos desde o Ziriguidum 2001: no desenvolvimento dos enredos, onde a tecnologia virou rotina, na Passarela do Samba, que passou por uma série de mudanças, e nos desfiles das escolas do Grupo Especial, que, em 2025, serão divididos em três dias, por iniciativa dos próprios dirigentes que, quatro décadas atrás, ainda reclamavam da divisão em dois dias, que começou em 1984. Gerações de sambistas – passistas, intérpretes, compositores, carnavalescos – deixaram suas marcas – muitos já se foram ou se aposentaram.
“Está em festa o espaço sideral / É Carnaval” – a folia das escolas de samba talvez não tenha ido a outros mundos, como imaginou Fernando Pinto, mas a visão futurista tem evolução garantida na Passarela. Neste Carnaval 2025, o enredo da sua Mocidade Independente é “Voltando para o futuro – Não há limites para sonhar”, do carnavalesco Renato Lage, depois de longa ausência. E o próprio comunicado da escola sobre o enredo remete ao criador do Ziriguidum: “a Mocidade fará uma viagem intergaláctica, onde ela se reconecta com seu brilho mais intenso, o de uma Estrela jovem, para questionar os próximos passos em um manifesto pelo futuro da humanidade”,