‘Parditude’: Conceito sobre identidade parda gera divergências no movimento negro

Número de brasileiros que se declaram pardos (45,3%) supera o de brancos (43,5%). Nomeclatura vem sendo adotada pelo IBGE desde 1950

Por Igor Soares | ODS 10 • Publicada em 3 de janeiro de 2025 - 07:29 • Atualizada em 3 de janeiro de 2025 - 08:00

Recenseadora do IBGE entrevista moradores da comunidade de Heliópolis, em São Paulo. Número de brasileiros que se declaram pardos chega a 45,3%. Foto Ettore Chierequini/AGIF via AFP

Nos últimos meses, a expressão “parditude” vem ocupando cada vez mais espaço nas redes sociais. Nesta arena talhada para o conflito de ideias e a divisão de opiniões, o debate sobre o tema não seria diferente: há quem defenda e há quem discorde. Trata-se de um conceito recente que se refere à identidade e à cultura de pessoas pardas ou mestiças. De acordo com o IBGE, o Brasil é um país onde 45,3% da sua população se considera parda, superando os 43,5% que dizem ser brancos. Já as pessoas que se autodeclaram pretas chegam a 10,2%. Entre integrantes do movimento negro, no entanto, a ideia de se criar uma “cultura parda” vem sendo rechaçada. Algumas lideranças veem na articulação uma tentativa de divisão racial, o que colocaria em risco direitos já garantidos pela população negra.

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O conceito de “pardo/a” vem sendo adotado pelo IBGE desde a década de 1950, quando começou a constar nos registros estatísticos. Uma corrente acredita que essa classificação teria sido criada a partir de uma cobrança do próprio movimento negro, com o intuito de abarcar pessoas negras que tinham vergonha de se identificar como tal. Outros argumentam que o IBGE criou o termo para que pessoas que não se identificassem como brancas ou pretas pudessem ser classificadas.

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Beatriz Bueno, de 27 anos, é comunicadora, pesquisadora e mestranda do programa de pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das idealizadoras do conceito de “parditude”. Ela defende que este seria “o primeiro projeto antirracista brasileiro focado na multirracialidade”. Beatriz, que só no Instagram reúne cerca de 90 mil seguidores, usa as redes sociais para falar sobre o tema. A pesquisadora argumenta que o termo tenta dar abrangência à “experiência social e subjetiva dos corpos e famílias multirraciais no Brasil, principalmente mestiços dos grupos branco, indígena e negro”. Beatriz explica que os movimentos multirraciais vêm crescendo no exterior, e cita o exemplo da América Latina, “onde temos o conceito de Consciência Mestiça para falar dessa experiência híbrida e fronteiriça. No Brasil, usamos a “parditude”, pois essa população é oficialmente classificada como “parda”, já que a racialidade no Brasil é fenotípica e dividida por cores pelo IBGE”.

O IBGE entende como pardos os indivíduos que sejam uma mistura entre as raças branca e preta, ou branca e indígena, caracterizando a miscigenação. Já na “parditude”, pondera a pesquisadora, “nós classificamos pelo fenótipo, ou seja, são pessoas que refletem essa mestiçagem através de uma forte ambiguidade que não se encaixa nas categorias branco, preto ou indígena”, diz. Beatriz critica a tentativa de criar “modelos monorraciais”: “Nas últimas décadas, as pessoas pardas têm enfrentado desafios consideráveis para se classificar, devido à tentativa de implementação de modelos monorraciais no Brasil, que não dialogam com a realidade mestiça”, complementa.

Pesquisador do IBGE conversa com uma representante da povo Tuyuka, na margem esquerda do o Rio Negro. O conceito de pardo incluiu todos que não se identificam como brancos, negros ou asiáticos. Foto Michael Dantas/AFP
Pesquisador do IBGE conversa com uma representante da povo Tuyuka, na margem esquerda do o Rio Negro. O conceito de pardo incluiu todos que não se identificam como brancos, negros ou asiáticos. Foto Michael Dantas/AFP

O movimento condena também a influência direta do Movimento Negro dos EUA no Brasil: “Eles adotaram a ideia de ‘uma gota de sangue’ e a hipodescendência, e o Brasil, como um país historicamente colonial que importa conceitos, incorporou isso. Passou-se a acreditar que a melhor forma de resistir ao discurso de embranquecimento é negar a identidade dos mestiços”, pontua Beatriz. A pesquisadora explica que a “parditude” utiliza conceitos decoloniais para trazer novas perspectivas mestiças e latino-americanas ao movimento antirracista. Eles defendem a expansão do movimento antirracista para um “Movimento Racial”. Nesse modelo, pondera Beatriz, “poderiam coexistir interseccionalidades como o ‘Movimento Negro’, o ‘Movimento Indígena’ e o ‘Movimento Multirracial’. O objetivo seria acolher de forma mais ampla indígenas, mestiços e suas diversas demandas, que muitas vezes se entrelaçam, mas também podem divergir”.

A pesquisadora afirma que o objetivo, no entanto, não é fazer uma separação entre negros e pardos: “Deve haver uma junção de pretos e pardos no que diz respeito ao reconhecimento das vulnerabilidades raciais, já que ambos os grupos experienciam o racismo. Contudo, discordo da ideia de agrupar esses grupos sob o termo “negro”. Pardos não são negros, e isso é explicitamente definido pelo IBGE, que classifica “pardo” como pessoas mestiças que refletem a mistura de duas ou mais raças”, sinaliza.

Perguntada se é possível identificar uma pessoa parda por traços fenotípicos, a pesquisadora diz que “pardos são pessoas ambíguas em fenótipo e experiência”. Mas ela admite que sim, “o que determina a experiência de ‘parditude’ é o fenótipo. Porém, também observamos pesquisas com famílias e indivíduos multirraciais que, apesar de nascidos em contextos mestiços, possuem fenótipo branco ou preto. Essas vivências refletem pautas multirraciais e merecem ser investigadas”.

Beatriz Bueno afirma que “quando utilizamos modelos monorraciais e, pior, binários, que oferecem apenas as opções ‘negro’ e ‘branco’, frequentemente ocorrem distorções. Algumas pessoas nitidamente pardas podem ser classificadas como brancas por uns e como negras por outros. No entanto, ao introduzir a possibilidade de um meio-termo, essas pessoas conseguem se reconhecer dentro de uma categoria que reflete melhor sua experiência social”. A pesquisadora critica também a falta de uma leitura mais aprofundada e honesta sobre o conceito: “Muitos criticam a ‘parditude’ sem compreender do que realmente se trata, baseando-se em preconceitos ou distorções. Alguns acreditam, por exemplo, que o conceito promove a ideia de democracia racial ou incentiva o embranquecimento, mas essas interpretações ignoram o conteúdo real das pesquisas”.

Movimento negro rechaça o conceito

O conceito, entretanto, ainda enfrenta barreiras no movimento negro, que vê a articulação como uma divisão racial, colocando em risco direitos já garantidos pela população negra. É um caminho ainda desconhecido por muitas lideranças negras, que não sabiam até mesmo da existência até serem questionados pela reportagem do “Colabora. Frei David, diretor da Educafro, uma organização que promove educação para pessoas negras, observa que é preciso tratar da questão com ‘seriedade”.

“O Brasil sempre fugiu do debate racial”, afirma o diretor da ONG, que ressalta que o país precisa fazer reparações pelos danos da escravatura. Para ele, o termo usado pelo IBGE é, de fato, questionável, uma vez que é preciso saber que pardos são esses. “Nos anos 1970, a comunidade lutou para abandonar o uso do termo ‘pardo’. Entendemos que há o ‘pardo-preto’, que sofre racismo constantemente, o ‘pardo-pardo’, que pode sofrer racismo, e ‘pardo-branco’, que nunca sofre racismo”, afirma, ressaltando que é uma interpretação do atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, adotada pela EducAfro.

Ele também entende que essa abordagem pode abrir margem para pessoas brancas se sentirem negras e que há uma preocupação com garantias da população negra, como as ações afirmativas, que, seguindo a ideia da ‘parditude’, pode deixar com que pessoas nitidamente brancas se passem como pardas. “A EducAfro defende que as bancas de heteroidentificação que não tenham orientação sigam a metodologia do ministro”. O ativista também afirma que faltam pesquisas para embasar esse conceito.

Outras lideranças do movimento negro veem com preocupação essa nova classificação. O que se discute é como pessoas brancas podem aproveitar dessa construção de raça e fraudar ações afirmativas exclusivas de pessoas negras e pardas, quando visivelmente brancas.

Yuri Silva é ex-Secretário do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, militante do Coletivo de Entidades Negras (CEN), mestre e pesquisador sobre raça e orçamento pela FGV. Ele afirma não ter conhecimento da discussão e que o uso do termo é uma novidade para ele. “Sequer tenho conhecimento da utilização desse termo no movimento negro brasileiro, é uma novidade para mim. Não tem sido alvo de debate, pelo menos não dos que tenho acompanhado, e não sei de que forma se aplica dentro das terminologias do movimento social negro do Brasil esse termo ‘partitude’.”

Para ele, o que se busca é uma diferenciação dos grupos, que pode prejudicar as conquistas de políticas públicas. “Só preciso alertar que usar a diferenciação de tonalidade de pele é uma necessidade para reafirmar as gradações de violência que o racismo provoca na sociedade brasileira. As pessoas mais claras tendem a sofrer o racismo de uma outra forma em relação a pessoas retintas, a pessoas negras retintas. No entanto, é essencial nesse momento em que o debate sobre colorismo avança na discussão, na pauta racial brasileira, que nós devemos defender e preservar a classificação racial de pretos e pardos formarem o grupo de negros como uma vitória histórica do movimento negro brasileiro”, afirma o pesquisador.

Há que se comemorar que a soma de pretos e pardos seja a maior vitória do movimento negro do Brasil nas últimas seis décadas, diz ele, “fazendo que, assim, nós nos tornássemos maioria, tivéssemos prioridade nas políticas públicas”. Ele observa que pretos e pardos não podem caminhar em sentidos contrários, buscando uma divisão. “É essencial que a gente não caminhe no sentido contrário, que é o sentido de dividir, em vez de juntar, como a classificação engendrada pelo movimento negro na década de 80, 90 fez. Para que, nessa divisão, a gente perca direito, a gente perca a maioria que nós defendemos que somos.”

E complementa, afirmando que o colorismo é sempre muito delicado no debate racial e que engendrar mais um conceito. “Acho que a gente não precisa de divisões nesse momento em que as questões raciais e o povo negro do Brasil são tão atacados por grupos conservadores, grupos de extrema-direita que se consolidam na nossa sociedade como parte dela, especialmente porque, sozinhos, nem pretos nem pardos formam a maioria na demografia brasileira.”

Do ponto de vista sociológico, ele avalia que o conceito pode esbarrar no discurso da mestiçagem. “Deve ser olhado de forma crítica porque o Brasil é, sim, um país marcado pela mestiçagem, mas a mestiçagem nesse caso significa a violência sofrida pelo povo negro, pelos povos africanos escravizados no Brasil durante o processo de colonização desse país, assim como a violência sofrida pelos povos originários, pelos povos indígenas. Uma mistura racial, numa mestiçagem, como conceituam os que estudam esse tema. Mas baseada na violência”, pontua o ex-secretário.

A classificação racial brasileira que deu certo, pondera o pesquisador, é sobre a junção de pretos e pardos para a formação da população negra, que é o que o IBGE usa como parâmetro para políticas públicas. “É resultante da luta histórica do movimento negro para enegrecer a população brasileira, para colocar cada vez mais pessoas dentro da categoria.”

A porcentagem de pardos que existe no Brasil hoje, portanto, significa, justamente, que nosso país é fruto de relações raciais que não são somente baseadas em um gradiente de pretos e brancos, frisa Silva. “Dentro desse gradiente, há variações de tonalidade de pele e os pardos são a maioria dos negros brasileiros. Os pardas são pessoas negras. É isso que conceituou o movimento negro brasileiro historicamente, de que pardos e pretos conformam o grupo de negros e, por isso, a divisão é prejudicial para concretização de políticas públicas efetivas voltadas para a população negra”, completa.

O que diz o IBGE

Os primeiros recenseamentos feitos pelo IBGE datam de 1872 e tinham, já à época, as nomenclaturas preto, branco ou caboclo (para pessoas indígenas). Após o período da escravidão, passou-se a entender o mestiço como classificação de cor. O termo, então, passou a abarcar pessoas que não eram nem brancas e nem pretas. Marta Antunes é pesquisadora e responsável por povos tradicionais no IBGE. A partir de uma linha do tempo, ela destaca o uso das nomenclaturas usadas pelo órgão estatístico. Foi em 1950 que o IBGE passou a adotar o termo “pardo” em conjunto com outras nomenclaturas como preto, branco e amarelo (que compreende pessoas orientais).

No período ditatorial, já na década de 1970, a pergunta de cor ou raça não foi a campo. Em 1991, passam a investigar a terminologia de raça. O questionário passa a ter amostras com cor ou raça a partir de 2010. “No caso, a população escravizada tinha sua cor declarada pelos donos, digamos assim, pelos escravocratas. Esse recenseamento acontece justamente antes da abolição e, após a abolição, tem um segundo recenseamento geral, em 1890, onde o objetivo do quesito era ver quem era essa população brasileira”, ressalta, sinalizando que as categorias passam a ser branca, preta, cabocla e mestiça. Ela diz que, a partir dessa classificação de mestiça e cabocla, pessoas indígenas e pretas poderiam sumir. A partir de 1990, o IBGE passa a investigar a terminologia de raças branca, preta, amarela, parda e indígena, uma vez que os povos tradicionais não se enquadravam em outras terminologias.

Em 2010, a pergunta de cor ou raça chega a todos os domicílios recenseados pelo instituto. “Traz assim uma inovação muito grande para a população branca, preta, amarela, parda indígena de forma separada a partir do questionário básico, que já tem várias informações, mas também você passa a ter o questionário amostra calibrado, ajustado para estar mais próximo do que é a estrutura de cor ou raça da população residente no Brasil.”

Para o Censo de 2022, ela afirma que houve um aprofundamento das discussões para melhorar a pesquisa dos indígenas e como o quesito cor ou raça seria trabalhado. No entanto, o que se percebeu foi que pessoas negras de pele clara estavam se apropriando do quesito amarelo. “Demandou que, para o Censo de 2022, a gente incluísse um alerta quando a pessoa se declarava amarela. A gente informava que, para o IBGE, amarelo é descendente de pessoas com origem oriental, coreano, japonês, chinês”, diz. E não há uma iniciativa de mudar a categoria, uma vez que já é usada na autodeclaração aberta pelos informantes e consolidada no entendimento da população e do governo, segundo o órgão.

A pesquisadora afirma que é importante investigar cor ou raça no Brasil, a fim de entender os cenários do país. “Não tem como negar a necessidade de continuar fazendo essa investigação, porque ela continua nos mostrando um país desigual.” Mais ainda, é preservar as garantias de direitos dessas populações. “Esses dados são importantíssimos porque eles nos mostram a importância de ainda termos no Brasil ações afirmativas, da gente ainda precisar olhar esses grupos populacionais específicos quando a gente pensa algumas políticas de forma diferenciada”, salienta.

O entendimento do IBGE, portanto, é que pretos e pardos conformam o mesmo grupo de pessoas pretas no Brasil. “Devido à dificuldade de a gente trabalhar com o dado da amostra desagregado, com preto, pardo, indivíduo, a proximidade dos indicadores desses dois grupos, a gente opta por juntá-los, porque ao juntá-los sabemos que, juntando, a gente não vai criar um indicador totalmente destoante. O IBGE, para fins de discussão das pesquisas amostrais, acaba fazendo essa junção e, assim, conseguimos dar o dado para a população preta também a nível de pesquisa amostral com maior significância estatística”, finaliza Antunes.

Igor Soares

Igor Soares é jornalista formado pela UFRJ. Atua como repórter do Fala Roça e como freelancer do #Colabora e do Rio On Watch. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos, segurança pública, economia e política, com passagem pelas redações do Estadão, do Portal iG, além de já ter produzido reportagens para a Folha de S. Paulo.

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