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Passamos a vida nos esquivando de estereótipos que nos aprisionam, sufocam e machucam; mas a verdade é que ninguém é uma coisa só

ArtigoODS 10 • Publicada em 24 de dezembro de 2024 - 08:26 • Atualizada em 24 de dezembro de 2024 - 10:25

Não passo incólume ao fim do ano. Detesto as ruas intransitáveis, as lojas cheias, aquele abafamento típico de quando está para chover “a qualquer momento agora”, e o céu desaba em água bem no meio das compras de Natal.

Mas simplesmente amo esse clima caótico de reta final, de semanas repletas de sextas-feiras, da sensação de “conseguimos”. Aquele afobamento típico de quando está para chover papel picado “a qualquer momento agora”, e a gente sabe que venceu mais um ano, bem no meio do abate do leão nosso de cada dia.

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É sempre também a época de voltar à minha cidade, no interior do Rio, estar com a minha numerosa e ruidosa família, e me encontrar com o que eu fui. Também – e talvez principalmente – é o período de me deparar com tudo que eu tentei desesperadamente não ser por tanto tempo.

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E fiquei pensando nisso. No quanto, principalmente como mulher – mas não só -, a gente passa a vida se esquivando de rótulos em que tentam nos enfiar e que só nos aprisionam, sufocam e machucam. Numa cidade pequena como a Três Rios em que eu nasci e cresci, desviar de estereótipos, apelidos e pechas que tentam colar à gente é questão de sobrevivência, é pular de pedrinha em pedrinha pra tentar chegar inteira à outra margem da vida.

Todo rótulo é injusto: em 2025, vamos extravasar para além dos estereótipos (Imagem: Sabine Kroschel por Pixabay)
Todo rótulo é injusto: em 2025, vamos extravasar para além dos estereótipos (Imagem: Sabine Kroschel por Pixabay)

Ninguém quer ser a piranha da cidade, a feia da sala, o burro da galera, e por aí vai – embora não haja absolutamente qualquer problema em alguma dessas coisas. Por outro lado, algumas pechas tinham lá seu valor na pirâmide social adolescente: o pegador, a mais bonita, a/o gente boa…Tudo isso fica bem diminuto, óbvio, quando a gente enfrenta questões mais reais e palpáveis. Na esteira da vida, importa muito pouco se você foi a “a feia da turma” da sua cidade do interior – ou de uma grande capital, que seja – em algum momento, enquanto precisa trabalhar, se relacionar e fazer a roda girar todo dia.

O problema é que a gente cresce aprendendo a tentar, sob qualquer custo, desviar de rótulos babacas e caber nos engrandecedores. Eu mesma já caí nessa cilada mais vezes do que gostaria de admitir. Já adulta, me vi passando maquiagem pra ir no mercado pra fugir do que senti quando, novinha, vi meu nome na lista das feias de alguma turma em que estudei. Até hoje, me vejo com dificuldade de pedir ajuda ou demonstrar fraqueza, desde que sabe-se lá como, passaram a me ver como uma mulher “forte” – qualquer que seja o significado disso.

E é claro que pequenezas como as que senti e sinto não são comparáveis a rótulos muito mais crueis e sintomáticos de opressões profundas e estruturais: a “neguinha” ou “negão” da turma (quando tinha), o viado do colégio, a sapatão da galera, a/o pobre do rolê.

No fim das contas, todo rótulo, embora possa ser (parcialmente) verdadeiro, é injusto; ninguém é uma coisa só o tempo todo. Dá pra alguém ser um babaca no trabalho e um amigo exemplar, ou vice-versa. É imprescindível saber se virar sozinha, mas conseguir pedir uma força quando a coisa aperta. É muito recomendável saber falar muita bobagem, fazer piada sem graça e dizer os palavrões mais escabrosos, mesmo tendo uma oratória exemplar. Pabllo Vittar cravou: “piranha também ama, piranha também chora”. Só fascista que é apenas isso mesmo, e contamina todas as áreas da vida.

Enquanto olho aqui da janela da minha mãe e contemplo a cidade onde tentei driblar tantos rótulos e caber em mil outros, fico pensando que o que eu quero de 2025 é que a gente possa extravasar para além dos estereótipos em que tentam nos engarrafar. Transbordemos. (E que quem insiste neles que se afogue pra lá, “o leite mau na cara dos caretas” etc – porque também não somos de ferro).

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