Lições de uma vida sem dinheiro

José Camarano, com um vulcão, ao fundo: experiência em fazenda do Havaí ira documentário. Foto Search/Divulgação

O stylist e videomaker José Camarano fala da experiência transformadora de viver quatro meses em uma fazenda no Havaí, sem um tostão no bolso

Por Leilah Accioly | Vida Sustentável • Publicada em 18 de novembro de 2017 - 08:37 • Atualizada em 7 de agosto de 2018 - 22:52

José Camarano, com um vulcão, ao fundo: experiência em fazenda do Havaí ira documentário. Foto Search/Divulgação
José Camarano, com um vulcão, ao fundo: experiência em fazenda do Havaí vira documentário. Foto: Search/Divulgação

Stylist e consultor de grandes marcas, curador e videomaker, DJ e produtor de festas, José Camarano, no início dos anos 2000, concebeu as e melhores festas da cidade e encabeçou o Gema TV , ao lado de Lucia Koranyi. O projeto, criado em 2007, foi uma plataforma experimental de divulgação de moda e arte. Em 2014, veio a decisão de morar e trabalhar em Nova York. Até que, sentindo-se espremido pelas pressões da profissão e do meio, veio o comichão de ampliar a experiência estrangeira e fazer um novo recorte. Foi nesse bode da vida insana na cidade grande que Camarano descobriu, em 2016, o World-Wide Opportunities on Organic Farms (WWOOF) . O movimento faz uma ponte entre fazendeiros e cultivadores de orgânicos para promover experiências culturais e educacionais baseadas em confiança e em troca sem dinheiro, ajudando a construir uma comunidade global sustentável.

Era tudo que Camarano queria. O destino não podia ser mais paradisíaco: o Havaí, mais precisamente, na Big Island, num vilarejo chamado Captain Cook, ponto em que a ilha, que era habitada por taitianos, foi descoberta pelos ingleses. Assim, ele passou a integrar a crescente multidão de inquietos que se aventura com propósito, como manda o século 21. Embora levar uma vida de fazendeiro não fosse algo tão estranho assim a Camarano, que foi criado em contato com a terra na Zona da Mata mineira, uma vivência de quatro meses sem tocar em dinheiro foi radicalmente diferente de qualquer coisa que já ele – acostumado a pagar as contas com o que ganha por seu trabalho desde os 15 anos – já tinha experimentado.  “O contato direto com a natureza promove um reset da nossa máquina, desfazendo conceitos antigos e renovando nossa visão de mundo”, diz.

Toda essa rotina fez com que eu sentisse a sensação maravilhosa e inédita na minha vida de ver dinheiro nascendo em árvore. Eu comia o que plantava com meus parceiros no programa

Desse reset nasceu seu novo projeto, um documentário sobre sua experiência no Havaí. Com imagens estonteantes em que o azul e o verde são onipresentes, Search é construído em torno de entrevistas com outros peregrinos pós-modernos saturados e em busca de ressignificar suas vidas. Diante de uma experiência-maquete de uma nova sociedade possível, Camarano questionou o sistema selvagem de produção e consumo de bens e serviços no qual sempre se viu integrado e reconhecido.

No momento em que os radares se voltam para as novas necessidades sociais e ambientais, consumo consciente, blue economy, criação colaborativa, cidades mais justas, inclusivas e inteligentes, e slow life, conversei com José Camarano sobre sua experiência no Havaí e sobre este movimento já muito visível, mas ainda difuso, que atualiza as propostas e a agenda hippie dos anos 1970. Quando fizemos a entrevista, Camarano estava a poucos dias de embarcar para Nova York, depois de uma temporada de seis meses no Rio, para gravar o conteúdo “entretemporadas” – que vai falar de como se conectar à natureza estando numa megalópole. Search ganhará uma edição gravada na Amazônia.

Como funcionou a experiência no Havaí? 

 O WWOOF é um programa de “work exchange”, você tem que aprender a plantar e trabalhar com isso do início ao fim da experiência. Trabalha-se 20 horas semanais em troca de moradia e provisões básicas. Mas não era uma lavoura, era um pequeno pedaço de terra para 20 pessoas darem conta, com flexibilidade de horário e com o cultivo todo automatizado por aplicativo, que cada um tinha que gerenciar. É um trabalho cujo resultado depende inteiramente do seu esforço e dedicação, mas você pode administrar o seu tempo como achar melhor, o que dá liberdade para outras atividades. No meu caso, também trabalhei levando turistas para nadarem com os golfinhos. Mas nada pressupõe que você ganhe dinheiro, papel-moeda.

Camarano experimenta o “Grounding”, que os havaianos praticam “para receber energia da terra”

E como foi abrir mão do dinheiro por tanto tempo?

A fazenda dava os grãos do que não estava plantado, por exemplo, e tínhamos um excedente de produção com o qual podíamos negociar algum escambo num pequeno mercado próximo à região. Fui a esse mercado apenas duas vezes, mas nessas vezes troquei mamão por abacate, não aguentava mais ver mamão na minha frente! Não consumi nada com embalagens durante toda a viagem, tive a alimentação mais natural possível, com muito peixe, grãos, frutas, legumes, verduras. Então, toda essa rotina fez com que eu sentisse a sensação maravilhosa e inédita na minha vida de ver dinheiro nascendo em árvore. Eu comia o que plantava com meus parceiros no programa. Poder se livrar de cartões e bancos também é incrível para alguém que sempre pagou suas contas, desde os 15 anos.

Foi difícil se desapegar do dinheiro?

Parar de pagar conta dá até um tilte, parece que você está fazendo uma coisa errada! Isso me trouxe a consciência de que a gente ganha tudo o que precisa e que construímos uma estrutura que nos faz estar sempre devendo. Não há necessidade desse acúmulo todo, de escravizar o outro para ter mais. Ficar sem dinheiro também me permitiu reconhecer a importância de poder trocar e realizar o propósito de viver diretamente do trabalho, sem tantos atravessadores no processo. O trabalho também ficou em primeiro plano quando o dinheiro sumiu. Vi como o trabalho voluntário engrandece, e eu falo de algo mais que caridade, falo de fazer algo bom guiado pela vontade. Também ficou claro que o dinheiro é uma energia e que onde você coloca sua energia ajuda a determinar o que você recebe de volta.

Cuidar do planeta foi um dos maiores estalos que tive na vida. Quero lutar em defesa da terra. Pra mim, essa descoberta foi como fazer aniversário, como ganhar um presente. Também entendi que o reaproveitamento é um caminho sem volta

O que essa experiência despertou em você de mais especial?

É um grande despertar da consciência em várias manifestações. O entendimento de que a terra é um ser vivo e que cuidar dela é essencial. Cuidar do planeta foi um dos maiores estalos que tive na vida. Quero lutar em defesa da terra. Pra mim, essa descoberta foi como fazer aniversário, como ganhar um presente. Também entendi que o reaproveitamento é um caminho sem volta, não acredito num futuro sem natureza, sem que voltemos à essência. Ali, eu realmente absorvi o que significam duas frases que já andavam comigo nos últimos tempos: “The only way out is in” e “I had to change myself to stay the same”. Entrar em contato com a nossa sabedoria ancestral e aprender sobre “geometria sagrada” para plantar me possibilitaram entender que tudo está encadeado, que a matemática não é aquela matéria chata que ensinam na escola, mas que é a própria natureza, que é uma maneira bonita, organizada e lúdica de vida. Ficar mais em silêncio também me ajudou a diminuir o ritmo, ouvir o que meu corpo quer. Ficou claro que a mentalidade machista é fundada no egoísmo, portanto, nada sustentável. Que essa energia masculina que se coloca como um poder acima da natureza – que é feminina, de fertilidade e abundância, e que precisa ser tratada com cuidado e respeito – tem que ser erradicada do mundo. Agora, acredito que esse despertar não pode se dar em todas as pessoas ao mesmo tempo porque a Terra colapsaria. Vamos ter que aprender a não ser mais tão radicais, e a nos entender com o tempo e não brigar tanto com a gente mesmo, se quisermos a grande mudança.

Que hábitos você conseguiu mudar depois que voltou?

No Havaí, tive sensações de completude que nunca tinha experimentado, uma espécie de nature high (em tradução livre, “onda da natureza”), em que me senti integrado com o chão, com o ar, com a água, ou seja, me senti parte do todo, mesmo, e atingi um estado de alegria que só tinha conseguido antes com drogas, em grandes mudanças na minha vida e quando criança. Nunca mais poderei ficar muito tempo longe da natureza e estou buscando incluí-la o máximo possível na rotina da cidade, com caminhadas por trilhas e mergulhos no mar. Também tento me manter longe ao máximo de produtos industrializados. Meu mantra é reduzir os embalados porque a relação com o corpo muda, você não fica se sentindo pesado, estufado. Lá, tive uma das minhas maiores conquistas que foi parar de fumar e já estou há um ano sem cigarro. Meditação está definitivamente incluída na minha rotina, não tenho como viver sem entender minha respiração como presença.

Camarano e Grace, sua colega na fazenda, admirando a paisagem. Foto: Search/Divulgação

Essa experiência também mexeu com a sua criatividade?

Foi aberto um canal que não conhecia e tudo passou a fluir melhor, até porque criar melhor tem a ver com mudar sua relação com o tempo, também. Entendi que eu era muito mais conectado à imagem que ao conteúdo e voltei a ter prazer em criar quando ganhei essa consciência. Digo que
minha criatividade voltou porque hoje ela tem propósito. Minha visão também mudou porque foram quatro meses sem ver prédios, imerso em folhas e bichos. Não vi nenhuma série ou programa de TV nesse período, e isso afeta muito a criatividade. Quando fui para o Havaí, estava me sentindo um “gastador” e embora seja triste, num primeiro momento, parar de comprar e produzir coisas pra vender, já que nossas vidas giram em torno disso, depois que você se reconecta à fonte, entende que o ser humano vai se reorganizar para consumir e produzir com mais inteligência, sem desperdiçar recursos. Uma das grandes lições dessa nova potência de criatividade que emergiu no Havaí foi que também não precisamos enriquecer cada vez mais o grande produtor e vivermos pobres, que podemos alimentar a cadeia criativa ao nosso redor (fazendo alusão a movimentos como o buy local), produzir nossas próprias coisas em alguns casos e ir levando a vida com menos objetos e mais criação ocupando esse espaço, em contrapartida.

Até que ponto experiências como essa são o novo fetiche do capitalismo ou apontam para onde a sociedade está caminhando?

O fetiche da fuga existe, todo mundo está desesperado, mas eu acredito que exista, sobretudo, uma busca pelo novo e um “novo” que elimine a constante necessidade de novidade que o capitalismo cria, o que enlouquece as pessoas e afasta-as de uma vida mais verdadeira. Explorar novas situações é o nosso mote, hoje. Está guardado no nosso DNA uma maneira ancestral de viver com a qual perdemos totalmente a conexão e é isso que vem sendo resgatado. Também estamos entrando em contato com o fato inegável de que somos parte de uma cadeia muito maior e que esta é maior que a engrenagem que inventamos na qual somos só mais uma peça descartável. Vejo como um caminho sem volta essa descoberta. Num mundo saturado de coisas que não precisamos e nem queremos, começamos a entender que já nascemos devendo ao sistema e que o mais justo seria que o governo nos garantisse o básico –  moradia, saúde e educação, para ficarmos livres para criar e conquistar o restante.

Não temos como parar o progresso, mas estamos buscando, sim, uma cidade menos agressiva para o planeta, um modo de vida que nos agrida menos internamente, também, um equilíbrio entre natureza e tecnologia

Liberdade é a nova palavra de ordem num mundo em que praticamente não temos escolha, em que estar dentro dos padrões e trabalhar até morrer parece ser a única verdade. Não vejo tudo que está acontecendo como um modismo, mas como um despertar de uma vida robótica em que a sua história não lhe pertence, não é sua, mas na qual você vive um script que já lhe entregaram antes mesmo do seu nascimento. É um grande “não” a toda essa programação o que estamos buscando. Vejo 2017 como o ano do grande débito, e também como a chave da virada para começarmos a pagar a nossa dívida com a gente e a Terra. Mas, nada disso quer dizer que sou contra o progresso tecnológico e da cidade. Não temos como parar o progresso, mas estamos buscando, sim, uma cidade menos agressiva para o planeta, um modo de vida que nos agrida menos internamente, também, um equilíbrio entre natureza e tecnologia.

Leilah Accioly

Nascida no Rio de Janeiro, Leïlah Accioly é jornalista de formação e inquieta por vocação. Escritora e poeta, lança seu primeiro livro em setembro. Artista visual, criadora do evento transmídia Sarau Eletrônico e cofundadora da revista Vertigem, foi curadora e diretora de exposições. Acaba de fundar a startup de design de móveis e marcenaria digital, Movendo.

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