A cenoura e o burro

Cena do clássico “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, feito em 1936. Foto de Divulgação

As estatísticas são infalíveis, mas ainda acreditamos no bilhete premiado

Por Leo Aversa | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 28 de dezembro de 2016 - 02:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:43

Cena do clássico “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, feito em 1936. Foto de Divulgação
Cena do clássico "Tempos Modernos", de Charles Chaplin, feito em 1936. Foto de Divulgação
Cena do clássico “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, feito em 1936. Foto de Divulgação

Há alguns anos visitei uma fábrica de balas e doces no interior de São Paulo. Fascinante, afinal quem é que não tem o sonho infantil de conhecer uma fábrica de doces? Até que cheguei na linha de produção de pastilhas. Entre elas, as pastilhas sortidas. Balas de todos os sabores vinham por esteiras até chegar em uma espécie de redoma, onde eram misturados por uma pá gigante e iam afunilando até que enchiam os pacotinhos, um por um.

Seria razoável imaginar que estaríamos, agora, vivendo em meio à quebra-quebras, greves gerais e revoltas contra essa lei que fará toda a população (menos os militares, os juízes e os políticos, mas aí é outra história) trabalhar até a beira do túmulo

Até aí tudo bem, maravilha. Só que existia a possibilidade, de acordo com a infalível estatística, de um pacotinho só ter balas de uva. Ou de abacaxi. Ou de limão. Para evitar este micro desastre, uma pessoa ficava ao lado da redoma, interferindo, quando necessário, no enchimento do saquinho ( com trocadilho).

Durante oito horas por dia, cinco dias por semana, ela permanecia ali, do lado da redoma, vendo se as balas de abacaxi, uva, limão etc se distribuiam democraticamente em cada embalagem. Se três ou mais do mesmo sabor se juntassem ele pegava o saquinho e esvaziava na redoma.

Oito horas por dia, cinco dias por semana

A versão Séc XXl de tempos Modernos, do Chaplin.

Oscar Niemeyer, em seu escritório, onde trabalhou normalmente até os cem anos de idade. Foto de Vanderlei Almeida/AFP
Oscar Niemeyer, em seu escritório, onde trabalhou normalmente até os 100 anos de idade. Foto de Vanderlei Almeida/AFP

Também há alguns anos fui fotografar o Oscar Niemeyer. Subi a escada íngreme que separava o último andar da cobertura onde ele trabalhava e passei algumas horas com o consagrado arquiteto.

Niemeyer continuava não só lúcido como ativo, envolvido em vários projetos ao mesmo tempo e com energia para procurar outros tantos mais. A sua vida era seu trabalho, onde conseguiu todo tipo de realização possível. Projetos monumentais, homenagens, prêmios, essa era sua rotina.

Aos 100 anos ele ia diariamente de casa, em Ipanema, ao trabalho, em Copacabana.

O que tem a ver um caso com o outro?

O governo quer aprovar uma lei que só permite a aposentadoria integral após 49 anos de trabalho, entre outras maldades.

Recorrendo à mesma estatística infalível que foi usada para controlar as balas no saquinho, podemos constatar que para cada Niemeyer existem milhões de fiscais de drops.

Sendo assim, é razoável imaginar que estaríamos, agora, vivendo em meio à quebra-quebras, greves gerais e revoltas contra essa lei que fará toda a população (menos os militares, os juízes e os políticos, mas aí é outra história) trabalhar até a beira do túmulo.

Não é o que está acontecendo.

Talvez por algum bug neurológico, talvez por excesso de capitalismo, a grande maioria das pessoas de 20, 30 ou 40 tendem a achar que terminará a vida como o Niemeyer: centenários, criativos, lúcidos e cheios de energia.

Ninguém se imagina aos 60 ou 70 sonhando com a aposentadoria, sem a menor paciência ou energia para continuar encarando um trabalho repetitivo e burocrático, o que é a realidade de 99% da população mundial.

Essa desconexão com a realidade alguns chamam de otimismo saudável, outros de burrice incorrigível.

De qualquer maneira, até um burro aprende com o tempo que ele nunca vai chegar na cenoura.

Já a gente olha para a estatística infalível e acha que o nosso caso será aquele um em um milhão. Seremos o bilhete premiado da mega-sena.

A engrenagem agradece.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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Um comentário em “A cenoura e o burro

  1. Maria Lucia disse:

    Além dos textos maravilhosos, sua bio aqui já vale um prêmio! Adoro seus escritos! Parabéns, Feliz Ano Novo e muita inspiração pra 2017! ⭐️✨

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