A angústia dos soropositivos na busca por medicamentos

Silvino, cantor e compositor soropositivo, debate HIV e preconceito por meio da música. (Foto: Fabiano Keller)

Pessoas vivendo com HIV relatam aflição e riscos diante das últimas falhas na distribuição de remédios que fazem parte do coquetel contra a Aids

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 3 • Publicada em 11 de outubro de 2017 - 08:50 • Atualizada em 30 de novembro de 2020 - 19:43

Silvino, cantor e compositor soropositivo, debate HIV e preconceito por meio da música. (Foto: Fabiano Keller)

“Nesse velho armário novo eu não vou entrar, parcelado em dias de aflição”, canta o jovem Silvino, de 25 anos, na música Olhos Amarelos. Na composição, ele fala da decisão de não esconder o resultado positivo para o teste de HIV (vírus da imunodeficiência humana), que fez em 2016. Vinicius Silvino decidiu transformar seus sentimentos e medos em arte. E se engajou na luta pelo fim da discriminação contra pessoas vivendo com o vírus. Agora, ele solta a sua voz para expor mais uma angústia das mais de 830 mil pessoas que fazem o tratamento de HIV/AIDS no Brasil: as falhas na distribuição de medicamentos. “Remédios que eu recebia em quantidade suficiente para dois meses, passaram a ser entregues para apenas um. Outros passaram a ter distribuição quinzenal. Isso nos coloca em constante apreensão e a alguns de nós, em risco”, alerta.

O Brasil está vivendo um dos piores momentos em relação à distribuição de antirretrovirais. Sempre falta em algum lugar. Estamos em um processo de retrocesso enorme. O governo está brincando com a vida das pessoas

Atualmente, o SUS oferece, gratuitamente, 22 medicamentos para soropositivos – 12 deles produzidos no Brasil. Nos últimos meses, pelo menos 13 estados declararam problemas no estoque de antirretrovirais. “É muito triste tudo que está acontecendo. Os meses de julho e agosto foram um caos”, afirma Regina Bueno, advogada e defensora das causas de pessoas que vivem com HIV/Aids. Foi ela a quem o jovem Alex (nome fictício), carioca de 28 anos, recorreu quando se viu pela primeira vez sem ter o lamivudina (que faz parte do coquetel) para tomar. “Fiquei um dia sem. No mês passado, foi a mesma coisa. É complicado, não era para acontecer. Então, tenho medo do que possa ocorrer daqui pra frente”, lamenta o rapaz, que está em tratamento há mais de um ano.

Salvador Corrêa: “Quem tem HIV não pode esperar”

Também foi a primeira vez, em quatro anos, que Guilherme (nome fictício), de 33 anos, foi em uma unidade de saúde atrás do seu coquetel e não encontrou um dos medicamentos. O fato aconteceu em setembro. “A atendente disse que o retornavir estava em falta, mas que os outros eu poderia levar. Era só assinar, ir embora e ficar retornando para ver quando o que estava faltando chegaria. Eu disse que aquilo era contra a lei e queria uma declaração por escrito do farmacêutico sobre a falta do remédio. No fim, conseguiram a medicação em um posto de saúde próximo”.

O fornecimento fracionado, com a entrega de pequenas quantidades de comprimidos e o pedido para que a pessoa volte em poucos dias para buscar o restante, também é completamente irregular, alerta a advogada Regina Bueno. “Isso é terminantemente proibido pela Anvisa, pelos conselhos de Farmácia e até mesmo pelo Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais”, diz. “Trata-se de uma doença crônica. Se a pessoa fica sem tomar um remédio, as consequências, muitas vezes, aparecem rapidamente, além de poder causar resistência viral. Cada organismo age de um jeito”, diz. “Como trabalhamos com jovens em rede, um ajuda o outro para que não deixe de tomar o medicamento, que é de uso contínuo e ininterrupto”.

Farmacêutico informa, por escrito, que medicação para o tratamento de HIV estava em falta em uma unidade de saúde no Rio de Janeiro (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo Regina, no mês de junho, o Ministério da Saúde reduziu a compra de medicamentos “à metade do que geralmente é adquirido para o abastecimento nacional”.  A situação foi regularizada já no mês seguinte. No entanto, também houve falhas na distribuição dos remédios, como afirma Salvador Côrrea, psicólogo com mestrado em Saúde Pública e porta-voz da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). “O Brasil está vivendo um dos piores momentos em relação à distribuição de antirretrovirais. Sempre falta em algum lugar. Estamos em um processo de retrocesso enorme, com uma ameaça muito grande à lei de acesso universal à distribuição de antirretrovirais“, diz ele. “A compra da metade do estoque (em junho) teve impacto direto nos serviços de saúde do Brasil todo. É um absurdo. O governo está brincando com a vida das pessoas”.

Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “não há falta de medicamentos para AIDS no Rio de Janeiro e em nenhuma unidade da federação. Cabe esclarecer que o processo logístico da distribuição de antirretrovirais é compartilhado entre União e Estados. Compete ao Governo Federal adquirir todos os medicamentos antirretrovirais e distribuir para o almoxarifado dos estados. Esses, por sua vez, devem repassar às unidades de Saúde”.

A questão que fica é: não falar sobre HIV/AIDS e permanecer alimentando esse monstro social prejudica só a quem vive com o vírus? Para mim, parece que atrasa a sociedade como um todo

O resultado disso é que pessoas vivendo com HIV, que já são obrigados a lutar diariamente contra o preconceito, têm redobrada sua carga de sofrimento. “Foi comprado remédio? Foi! Mas não o suficiente para que pudesse cobrir as falhas na logística da distribuição. Tenho atendido gente em completo desespero”, afirma Reinaldo R. Júnior, ativista e coordenador de eventos da Rede Jovem Rio +, voltada para soropositivos. “Quem tem HIV não pode esperar”, reforça Salvador Corrêa, autor do livro “O Segundo Armário: Diário de um Jovem Soropositivo”.  “Estamos falando de uma doença, de uma situação que pode levar à morte. A vida tem que estar em primeiro lugar, acima de qualquer outro interesse”, finaliza.

Em meio à discriminação, aos retrocessos e à angústia e medo gerados pelos últimos problemas na distribuição de medicamentos, Silvino, o cantor citado no início da reportagem, segue fazendo da sua história inspiração para quem, como ele, carrega o vírus: “Expor a sorologia é um ato de coragem? É. Mas também é um ato de oportunidade, percebe? Você não é só um vírus. Você é um corpo social, que está inserido em determinada situação. A questão que fica é: não falar sobre HIV/AIDS e permanecer alimentando esse monstro social prejudica só a quem vive com o vírus? Para mim, parece que atrasa a sociedade como um todo”.

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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Um comentário em “A angústia dos soropositivos na busca por medicamentos

  1. Gilmar de Oliveira disse:

    Não se usa mais o termo COQUETEL. O correto é TARV, Terapia Anti Retro Viral. É um tratamento que usa hoje em dia um a 3 comprimidos diariamente.
    Até porque com tão poucos comprimidos, não se compara com a terapia de coquetel de 25 anos atrás.

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