A zika e as mulheres

Sofia Valentina, de 7 meses, diagnosticada com microcefalia, dorme no colo da mãe Vera Lúcia enquanto aguarda consulta num hospital de Recife

Até o final de abril, 7.300 casos de microcefalia foram associados à infecção

Por Flavia Milhorance | ODS 3 • Publicada em 17 de maio de 2016 - 08:00 • Atualizada em 17 de maio de 2016 - 11:14

Sofia Valentina, de 7 meses, diagnosticada com microcefalia, dorme no colo da mãe Vera Lúcia enquanto aguarda consulta num hospital de Recife
Sofia Valentina, de 7 meses, diagnosticada com microcefalia, dorme no colo da mãe Vera Lúcia enquanto aguarda consulta num hospital de Recife
Sofia Valentina, de 7 meses, diagnosticada com microcefalia, dorme no colo da mãe Vera Lúcia enquanto aguarda consulta num hospital de Recife

A amplitude da epidemia da zika é impressionante, mas são mulheres pobres as principais vítimas. A antropóloga Debora Diniz desembarca esta semana em Copenhague, capital da Dinamarca, para buscar em solo estrangeiro dar voz àquelas que vêm sendo esquecidas no Brasil enquanto todas as atenções voltaram-se para a crise política. Ela levantará o debate na conferência Women Deliver 2016, num grande encontro para se discutir questões de direitos reprodutivos e sociais de meninas e mulheres.

Em dezembro, a política de enfrentamento da Opas ainda não falava em síndrome neurológica; em fevereiro, a OMS declarou os efeitos da zika como emergência global; hoje o órgão já reconhece a causalidade entre a zika e a síndrome. Tudo aconteceu muito rápido, e ainda há perguntas em aberto.

“É uma epidemia que não ataca as elites. Ela toca no cerne da desigualdade”, defende a professora da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética Anis, que lançou recentemente o documentário “Zika”, sobre mulheres de baixa renda da Paraíba infectadas pelo vírus durante a gravidez e cujos fetos desenvolveram microcefalia.

O surto de zika já completou um ano e afetou 49 países desde 2015, segundo a Organização Pan-americana de Saúde (Opas), órgão ligado à Organização Mundial de Saúde. O Brasil é o que concentra o maior número de ocorrências. Desde abril do ano passado, foram notificados 91.387 casos prováveis de febre pelo vírus Zika no país, dos quais 31.616 foram confirmados, de acordo com o Ministério da Saúde.

Populações pobres são mais infectadas, pois vivem em condições de saneamento precário e acesso irregular à água potável, o que contribui para a proliferação de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. E indo além, são mulheres as que têm consequências mais devastadoras, com o risco de seus bebês desenvolverem síndromes neurológicas resultantes da infecção. Dados das Secretarias estaduais e do Distrito Federal de Saúde indicam que, até 30 de abril, 7.343 casos de microcefalia ou outras malformações foram associadas à infecção.

Ação sobre direito ao aborto em casos de zika

Debora também é articuladora da ação sobre planejamento familiar diante da epidemia, cujo texto deverá ser apresentado até o final do mês ao Supremo Tribunal Federal (STF). Um dos pontos é o direito ao aborto por mulheres grávidas que contraíram a doença.

Débora Diniz defende o direito ao aborto por mulheres grávidas que contraíram a doença
Débora Diniz defende o direito ao aborto por mulheres grávidas que contraíram a doença

Desde janeiro, o documento vem sendo elaborado por acadêmicos, ativistas e advogados. A Associação Nacional de Defensores Públicos é o novo parceiro, o que pode trazer mais peso para sua aprovação.

A antropóloga é bastante crítica à posição de governos da América Latina, como Colômbia, El Salvador, Equador e Jamaica, de recomendar que se evite engravidar enquanto a epidemia não for controlada. O Brasil não adotou a orientação em nível nacional, mas o diretor do departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis, Cláudio Maierovitch, recomendou que mulheres das regiões mais afetadas adiem os planos de gravidez.

Para ela, estratégias desta natureza vão contra direitos reprodutivos dessas mulheres, e colocam sobre elas a responsabilidade por uma falha dos governos de lidar com a crise. Por isso, na argumentação da ação, pede-se uma reparação do Estado por não garantir as políticas públicas necessárias para evitar a epidemia e por acabar violando direitos constitucionais.

Além disso, o texto cobra distribuição irrestrita de repelentes, promoção de métodos de contracepção, atendimento de saúde próximo ao domicílio, benefícios continuados e o direito à interrupção legal da gestação pelas mulheres grávidas infectadas.

São pedidos que têm como foco mulheres de baixa renda, sem acesso à informação, saúde ou meios de interromper a gravidez ilegalmente de forma segura. “Por que mulheres com recursos vão a clínicas, enquanto que as pobres usam métodos arriscados”, comenta Debora, citando dados de que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos de idade já fez pelo menos um aborto ilegal.

Ação sobre anencéfalos aprovada em 2012

A antropóloga também esteve à frente da ação sobre aborto de fetos anencéfalos no STF. Proposto em 2004, o texto só foi aprovado em 2012. Mas hoje, este é um dos três casos em que a interrupção da gestação é permitida no Brasil, além de estupro e risco de vida para a mãe.

Uma pesquisa Datafolha divulgada em dezembro do ano passado mostra que a maioria dos brasileiros não quer nenhuma mudança na regra: 67% são favoráveis à manutenção da lei. Outros 16% acreditam que o aborto deve ser permitido em outros casos e 11% acreditam que a prática deveria deixar de ser crime em qualquer situação.

Quanto à nova ação, Debora diz ser impossível fazer previsões. E há algumas razões para tamanha incerteza. Se no caso dos anencéfalos os bebês já nasciam mortos, não é o que costuma acontecer com os fetos que desenvolveram a síndrome causada pela zika, o que levanta um debate moral sobre “interrupção da vida”. Por outro lado, a situação de fetos anencéfalos era estática, enquanto que a zika é uma emergência global, que requer mais urgência. A preocupação de Debora, na verdade, é que “tudo ficou em suspenso” diante da crise política brasileira, embora a epidemia de zika continue a representar uma emergência global.

“De cada dez entrevistas e artigos, nove atualmente são para a mídia internacional”, diz Debora, argumentando que, ao contrário do país no momento, há enorme interesse estrangeiro diante da epidemia. “Em dezembro, a política de enfrentamento da Opas ainda não falava em síndrome neurológica; em fevereiro, a OMS declarou os efeitos da zika como emergência global; hoje o órgão já reconhece a causalidade entre a zika e a síndrome. Tudo aconteceu muito rápido, e ainda há perguntas em aberto”.

Flavia Milhorance

Jornalista com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.

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Um comentário em “A zika e as mulheres

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Nada mais pedagógico para que a sociedade entenda o cerne desta questão que as frase formuladas:
    “É uma epidemia que não ataca as elites. Ela toca no cerne da desigualdade”
    Populações pobres são mais infectadas, pois vivem em condições de saneamento precário e acesso irregular à água potável, o que contribui para a proliferação de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti.

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