A sociedade da raiva pode comprometer gerações futuras

Uma pessoa impulsiva e estressada tem probabilidade de transformar biologicamente a sua estrutura celular e influenciar seus descendentes

Por Elisa Bichels | ODS 3 • Publicada em 10 de agosto de 2017 - 09:08 • Atualizada em 11 de agosto de 2017 - 13:32

"Um dia de fúria": Michael Douglas explode contra tudo e contra todos no filme de 1993 (Reprodução)
“Um dia de fúria”: Michael Douglas explode contra tudo e contra todos no filme de 1993 (Reprodução)

O provérbio repetido pela minha avó, garantindo que “Pau que nasce torto, morre torto”, não se aplica mais aos novos estudos da genética. Graças à epigenética, sabemos hoje que o nosso estilo de vida pode influenciar nosso código genético, fazendo com que nossa prole sofra interferência real da forma como vivemos, em vez de apenas carregar, em seu DNA, componentes herdados. Mas o que podia ser uma boa notícia, no contexto atual, vira sinônimo de preocupação. A vida estressante que temos, com a sociedade refém da violência e o país em crise, está produzindo uma sociedade com mais raiva e mais estresse.  A agressividade está tomando conta do dia a dia, permeando todas as relações. Sendo assim, se não houver mudanças, o que esperar das próximas gerações?

Vários estudos já nos mostram que nossas emoções transformam a química de nosso corpo. Se a pessoa é raivosa, impulsiva, estressada, pode transformar biologicamente a sua estrutura celular e passar isso adiante. O mesmo acontece para o bem.

Primeiro, é preciso compreender o momento atual. Em geral, a raiva surge quando vivenciamos uma rejeição ou quando precisamos “remover” um obstáculo, algo que nos invada ou que insulte nossos valores. Ocorre que fatores sociais e econômicos também influenciam a raiva, nos motivando a procurar mudanças, fazer justiça, lutarmos por nossos direitos. São esses fatores, superativados no Brasil de hoje, que estão provocando mais raiva na população e podem criar um cenário muito negativo para o futuro.

Vários estudos já nos mostram que nossas emoções transformam a química de nosso corpo. Se a pessoa é raivosa, impulsiva, estressada, pode transformar biologicamente a sua estrutura celular e passar isso adiante. O mesmo acontece para o bem. Um estudo japonês mostrou, por exemplo, que quando ratos bebês receberam cócegas da mãe rata por cinco minutos, seguidos de uma sequência de carinho, foram desencadeadas mudanças fisiológicas reais em todo o sistema nervoso. Ou seja: emoções positivas provocaram uma melhora na saúde. Em outras palavras, significa dizer que depende de nós, da forma como nós nos moldamos às experiências do cotidiano, a forma que esses mecanismos de mudanças na expressão do gene acontecem e fazem com que nosso corpo desenvolva uma identidade própria. Ninguém mais será vítima do DNA. Somos agentes ativos de modificações e responsáveis por elas.

Precisamos falar disso para deter o processo atual. Se quisermos promover gerações saudáveis, temos que nos responsabilizar pelas nossas atitudes agora. Em todas as esferas. Não apenas individualmente. Para a Organização Mundial de Saúde, doença não é ausência de saúde e sim falta de qualidade de vida.

O incrível Hulk: personagem é um ícone da raiva que transforma (Divulgação)
O incrível Hulk: personagem é um ícone da raiva que transforma (Divulgação)

Há de se considerar ainda que o estresse ambiental é um dos quatro fatores de desencadeamento de transtorno comportamental. Prova disso é que na sociedade atual, muitas pessoas desenvolvem um transtorno depois de sofrerem um assalto, uma situação de agressividade, abuso, estresse excessivo. Quanto mais estresse no cotidiano e mais exigências ambientais, maior chance de desenvolver um transtorno. Ninguém está livre deles.

Os consultórios médicos estão cheios. Crianças e adolescentes com uma enxurrada de alergias, gastrites, depressão, ansiedade, fobia social. Jovens se automutilando e índices de suicídio alarmantes entre adolescentes. O que estamos construindo, afinal?

Os consultórios médicos estão cheios. Crianças e adolescentes com uma enxurrada de alergias, gastrites, depressão, ansiedade, fobia social. Jovens se automutilando e índices de suicídio alarmantes entre adolescentes. O que estamos construindo, afinal? No Brasil de hoje, saúde mental ainda sofre com muito desconhecimento e preconceito, o que dificulta propostas de prevenção e tratamento. Em sociedade mais modernas, há grandes investimentos para ensinar as crianças, desde pequenas, a lidar com as diferentes emoções, justamente porque entendem o poder de transformação que as atitudes podem trazer para aquela e para as próximas gerações.

Nesta semana, mais de mil profissionais, entre cientistas, médicos, psicólogos, fisioterapeutas, professores, entre outros, estarão reunidos, no Rio, no Congresso da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infanto juvenil, para debater a prevenção à saúde mental das crianças e adolescentes. É uma oportunidade para discutir os avanços de estudos em todo o mundo. E buscar por aqui a conscientização de que só com prevenção, podemos mudar esse cenário.

Em paralelo, precisamos mostrar a toda a sociedade que nossos netos poderão ser menos estressados, se apesar de toda nossa realidade atual estar caótica, conseguirmos maior estabilidade emocional. Ainda que individualmente não possamos controlar a violência ou reduzir a crise, minimizando assim os aspectos ambientais, investir nas nossas atitudes já ajuda na mudança. Terapias orientais de relaxamento, técnicas de respiração, e ter como hábito reforçar atitudes e pensamentos positivos e desligar aqueles mais negativos, vão ajudar a criar uma geração mais calma, mais confiante, menos egoísta e mais altruísta. E em alguns anos, o velho ditado do pau torto será apenas uma lembrança do passado.  

Elisa Bichels

Psicóloga Clínica há 26 anos, especialista em Terapia Racional Emotiva Comportamental pelo Albert Ellis Insitute, de New York. Em seu consultório, desenvolve trabalhos com pré-adolescentes, adolescentes e adultos na área de saúde mental e psiquiatria. Elisa é mãe de três filhos (21/19/10 anos) e se especializou em prevenção à suicídio junto a adolescentes e automutilação.

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