Encalhado no fundo da boca banguela

Para os porcos, o lugar é uma sucursal do paraíso

Preso no meio da Baía de Guanabara de barco, jornalista se sente em um 'planeta árido', com silêncio acachapante e odor insuportável

Por Marcus Veras | Sem categoria • Publicada em 27 de novembro de 2015 - 13:12 • Atualizada em 1 de dezembro de 2015 - 10:07

Para os porcos, o lugar é uma sucursal do paraíso
Fundo da Baía de Guanabra
Porcos, urubus e muito lixo se misturam transformando um dos cenários dos Jogos Olímpicos de 2016 em um lixão a céu aberto

Não sei dizer quantas vezes cruzei a Baía de Guanabara a caminho de Niterói ou Paquetá. Férias, passeio, trabalho. Nestas rotas, já dá para ver um pouco da degradação que infelicita o maior patrimônio natural dos cariocas. Mas nada se compara a uma visita ao fundo da boca banguela, na irônica expressão de Lévi-Strauss citada por Caetano Veloso.

Escolhido o Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a questão da Baía de Guanabara saiu das sombras onde se encontrava desde a Rio-92 e se tornou alvo de críticas acerbas, gerando uma infindável lista de desmentidos e promessas de gestores e executivos. Todos tergiversaram, fossem federais, estaduais ou municipais, e rigorosamente nada foi feito para enfrentar esta questão. Uma das tribos mais atingidas pela degradação (a palavra poluição já não é suficiente para definir o caos) é a dos velejadores, que há muito se esgoelam apontando os problemas da água da Baía. E foi a eles que recorri para ver, ouvir e sentir os lamentos da natureza.

Em uma lancha de 16 pés com motor de popa, guiado pelas mãos seguras dos experts Murilo Novaes e Alexandre Haddad, saímos do cais do Iate Clube do Rio de Janeiro por volta das 11 horas de uma manhã cinzenta. Mesmo sem céu azul, a paisagem é deslumbrante: o Pão de Açúcar, o Cara de Cão, o recorte da cidade, a visão distante das praias oceânicas de Niterói. Mas a graça termina exatamente aí, ao se cruzar a grande ponte que liga o Rio à cidade de Araribóia.

Fundo da Baía de Guanabara
A população à beira da Baía: condições precárias

A primeira condição que se altera é a quantidade de detritos, em seguida a cor de água, logo o cheiro vai se tornando pestilento. E ao entrar no chamado Canal do Galeão, a Infraero não faz sua parte e o lixo se acumula nas bordas, nas beiras. De fantasias de carnaval a enormes pneus, tudo infesta as margens.
Sarapuí, Meriti, Pavuna… Todos os rios que desembocam na Baía estão mortos, assassinados por esgoto, lixo, incúria, corrupção.

A velocidade da lancha diminui, o ecobatímetro, medindo a profundidade, avisa que estamos a menos de 1 metro. Embocamos pela boca do rio Meriti e lá está ela, a comunidade Beira-Mar, imensa, indescritível. Barracos desbarrancados, porcos, urubus, barcos abandonados, muito, muito lixo, e o terrível odor que agora chega às raias do insuportável. Fotografo sem fazer muitos movimentos que chamem a atenção, o tráfico comanda a área e podemos ser confundidos com policiais. Algumas crianças acenam, o que me tranquiliza um pouco. Na outra margem, a luta inglória do biólogo Mario Moscatelli, que tenta freneticamente salvar os manguezais da região construindo redes de proteção contra a avalanche do lixo, cada vez maior.

O silêncio é acachapante. Não há um pássaro, uma brisa, um ruído sequer. A sensação é a de estar em um universo paralelo onde qualquer forma de vida foi eliminada. Ou em um planeta árido, destes que os cineastas fabulam em Hollywood. Só que é real

Depois de 10 ou 15 minutos, visto o que era possível, em baixa velocidade retomamos à jusante. No entanto, a maré baixou, e na foz do rio encalhamos na lama, cercados pela água negra e fétida. Nada a fazer, a não ser esperar que a maré suba. O silêncio é acachapante. Não há um pássaro, uma brisa, um ruído sequer. A sensação é a de estar em um universo paralelo onde qualquer forma de vida foi eliminada. Ou em um planeta árido, destes que os cineastas fabulam em Hollywood. Só que é real, muito real. É tão intensa a sensação que Alexandre, Murilo e eu sequer conseguimos conversar, nosso único movimento é olhar o ecobatímetro para acompanhar o lento subir da maré.

De tempos em tempos ouvimos o ronco das turbinas dos aviões que sobem e descem do Tom Jobim. O sol arrisca uma breve fuga e escapa às nuvens, o que só faz aumentar o calor e o sentimento de desolação. Coloco a gola da camisa sobre o nariz para proteger o olfato mas é inútil. Imóveis, percebemos com mais detalhes o lodo que nos cerca. Há o indefectível sofá, uma carcaça de um animal não identificado, muitas garrafas pet, a sensação de estar em um rio morto é que a qualquer momento você pode ser sugado pela água negra. Passados quarenta ou cinquenta minutos, o fundo da lancha se desprende, e finalmente começamos a navegar de volta, com uma chuva fina que parece ter chegado para nos lavar de toda a imundície.

Manguezais em luta contra o lixo que vem da margem direita
Manguezais em luta contra o lixo que vem da margem direita

A doença que feriu Baía de Guanabara não vem dela. Mas dos municípios de seu entorno, que lançam, diariamente, 461 milhões de litros de esgoto doméstico sem tratamento (dados do Instituto Trata Brasil). Mais: no Brasil, 103 milhões de pessoas não estão conectadas às redes de esgoto, e só 38,7% dos esgotos gerados são tratados. O Brasil só será uma nação civilizada quando toda sua população tiver acesso à água e ao esgoto tratado. Parece impossível, mas só assim nossa Baía será salva.

Os ecobarcos, as promessas, os planos, o recolhimento de lixo que tenta tapar o sol com a peneira, os dólares (quase 1 bilhão!) de capitais japoneses que despareceram nos anos 1990 no rastro de obras que apodreceram no entorno da Baía, tudo isso é firula que os organizadores dos Jogos Olímpicos aceitaram sem delongas. Como se diz na gíria, é jogo jogado: quando a pira se apagar, na boca banguela tudo vai continuar como dantes.

Marcus Veras

É jornalista, roteirista e escritor. Colaborou em vários jornais da imprensa alternativa durante os anos de chumbo. Esteve nas redações de revistas da Editora Bloch, do Jornal do Brasil e da TV Globo (RJTV e Globo Ciência). Foi diretor de um dos programas pioneiros em ecologia na TV brasileira, “Baleia Verde” (Intervideo/TVE), entre 1988 e 1990. Como fotógrafo, atuou nas campanhas de Fernando Gabeira em 2008 e 2010. Tem dois livros publicados (A Cidade Arde, contos e Qualquer Maneira de Amar, romance). “Colaboro com o #Colabora porque não existe outra forma der ajudar o planeta a sair da encrenca em que se meteu”.

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6 comentários “Encalhado no fundo da boca banguela

  1. Patricia Cabral disse:

    Não Vai continuar como antes não! Acabou a farra dos políticos! O Povo Brasileiro ACORDOU! CHEGA de BAGUNÇA com o Dinheiro da POPULAÇÃO! Somos NÓS que pagamos os salários deles! ESTAMOS DE OLHO E VAMOS COBRAR SEMPRE!

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