Majestades, é preciso saber viver!

Roberto Carlos num dos shows da sua turnê deste ano, em Barra Funda, São Paulo. Foto de William Volcov/Brazl Photo Press

Roberto Carlos repete Pelé e fica à margem das cerimônias olímpicas

Por Aydano André Motta | ODS 9Rio 2016 • Publicada em 8 de setembro de 2016 - 19:48 • Atualizada em 8 de setembro de 2016 - 21:03

Roberto Carlos num dos shows da sua turnê deste ano, em Barra Funda, São Paulo. Foto de William Volcov/Brazl Photo Press
Roberto Carlos num dos shows da sua turnê deste ano, em Barra Funda, São Paulo. Foto de William Volcov/Brazl Photo Press
Roberto Carlos num dos shows da sua turnê deste ano, em Barra Funda, São Paulo. Foto de William Volcov/Brazl Photo Press

O supremo arrebatamento da odisseia de grandes eventos do Rio se deu bem no finzinho da cerimônia de abertura dos Jogos Paralímpicos. A voz que está tatuada na alma dos brasileiros surgiu de surpresa para encher o estádio/templo, na apresentação impecável de “É preciso saber viver”. Nunca houve momento tão incrível. O cantor-emblema reencontrou-se com o povo que o cultua e reinaugurou sua carreira, mostrando-se, pela primeira vez, humano. Um espetáculo.

Como se diz hoje em dia, #sóquenão.

Quem espera que a vida
Seja feita de ilusão
Pode até ficar maluco
Ou morrer na solidão
É preciso ter cuidado
Pra mais tarde não sofrer
É preciso saber viver

Porque somente a monumental celebração aos superhumanos da noite do feriado no Maracanã consegue superar a oportunidade que Roberto Carlos jogou fora. A maior marca da música brasileira desperdiçou a chance de reinventar seu personagem, ao virar as costas para a festa paralímpica, e deixar para Seu Jorge (excelente, registre-se) o privilégio de entoar a canção. Foi lindo – só para ratificar a certeza da apoteose inesquecível que seria, na voz do autor (como você pode conferir no vídeo abaixo).

Quem espera que a vida/ Seja feita de ilusão/ Pode até ficar maluco/ Ou morrer na solidão/ É preciso ter cuidado/ Pra mais tarde não sofrer/ É preciso saber viver”, ensina a linda composição de Roberto com o “amigo de fé, irmão camarada” Erasmo Carlos. A coluna Gente Boa, d’o “Globo”, revelou, meses atrás, que o cantor liberou a obra, mas recusou o convite dos organizadores para estrelar a cerimônia de abertura.

No bojo da ideia, estava, por óbvio, o fato de Roberto Carlos ser um portador de deficiência. Em 29 de julho de 1947, quando tinha apenas seis anos, ele perdeu a parte inferior da perna direita, ao ser atropelado por um trem em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade natal. Não há ser humano sobre a Terra, que conheça Roberto Carlos e não saiba da história trágica. Gerações de brasileiros acostumaram-se, Natal sim Natal também, a observá-lo entrar pela sala, via televisão, manquitolando discretamente, graças à ajuda de uma prótese. Ao longo dos anos, mudaram (pouco) as roupas, mudou (menos ainda) o repertório. Ficaram o cabelo, o andar – e a devoção da plateia formada por (quase) um país inteiro.

Por tudo isso, agora, o astro errou feio, errou rude. Seria ótimo para o Brasil, e maravilhoso para ele, aos 75 anos, permitir-se surgir humano, simplesmente, diante dos fãs. Não precisaria mostrar a prótese, exibir a limitação, nada disso. Sua simples presença preencheria de nobreza o evento da inclusão e materializaria o prodígio de torná-lo ainda mais amado. Inclusive, a médio prazo, renderia mais dinheiro. Faltaram a sensibilidade e o senso de oportunidade que marcam sua trajetória.

Além de ratificar como o Brasil não deu sorte com seus reis. O de nossa outra paixão manteve-se ao largo de todos os megaeventos esportivos que aconteceram por aqui. A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 passaram sem que a imagem ultraconhecida de Pelé surgisse neles, um instante sequer. O maior jogador de futebol de todos os tempos vestiu a camisa 10 do time da reclusão.

Pelé, na sacada do museu que leva o seu nome, em Santos, numa das raras aparições durante os eventos olímpicos. Foto de Guilherme Kastner/Brazil Photo Press
Pelé, na sacada do museu que leva o seu nome, em Santos, numa das raras aparições durante os eventos olímpicos. Foto de Guilherme Kastner/Brazil Photo Press

Antes das Olimpíadas, circulou a informação que ele teria a missão de acender a pira no Maracanã. Réquiem merecido para o autor de insuperáveis (para todo o sempre) 1.281 gols, personalidade mais conhecida da história brasileira, protagonista de nossa melhor era esportiva. Mas, depois que parou de jogar, Pelé enveredou numa espiral corporativa, a ponto de ser quase impossível encontrar uma imagem pós-futebol na qual não esteja embrulhado num terno. (Um raro momento se deu na fugaz aparição com a tocha, em Santos, na sacada do museu que conta sua história, na noite da sexta-feira 22 de julho. O Rei vestia o uniforme dos condutores do fogo olímpico. E só.)

Como Roberto, ele mergulhou numa viagem de não ser humano. Pessoas próximas descrevem uma obsessão em manter o peso dos tempos de atleta – não pela virtuosa busca de saúde e bem-estar, mas como preservação da imagem. A recuperação de uma cirurgia foi, aliás, o pretexto especulado para declinar da missão olímpica. O Rei do Futebol não quis deixar que o mundo o visse convalescente, fragilizado – humano, portanto. Perdeu a oportunidade de fazer como Muhammad Ali, a lenda do boxe que acendeu a pira nos Jogos de Atlanta/1996 toureando o Mal de Parkinson em estágio avançado. Produziu imagem incrível, que aumentou o culto em torno de seu personagem. (No Rio, a missão acabou muito bem executada por Vanderlei Cordeiro de Lima, outro herói do nosso esporte.)

Pena. Unidos em se manter distantes do povo que os ama inegociavelmente, Roberto Carlos e Pelé terminam como os maiores derrotados. Poderiam ser gigantes ainda maiores – mas insistem em se apequenar. Ou, como reza a canção:

Numa flor que tem espinhos

Você pode se arranhar

Se o bem e o mal existem

Você pode escolher

É preciso saber viver

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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9 comentários “Majestades, é preciso saber viver!

  1. Ana Andreazza disse:

    Grande texto!!! Perfeita colocação! Estava justamente pensando nessa coisa maluca das pessoas quererem se mostrar acima das nossas humanas mazelas e vulnerabilidades. Valeu!

  2. Valesca disse:

    Texto perfeito!!!! Incrível como vc se expressou bem e chamou a atenção de como nossos ídolos não estão focados em agradar o seu público!!! Enquanto isto, Paul McCartney em Londres, Mohamed Ali em Atlanta e tantos outros que valorizam a posição onde estão. E se a questão era engordar o bolso, perderam uma oportunidade de serem ainda mais conhecidos e acalmados no restante do mundo!

  3. HAMILTON GUIMARAES disse:

    Parabéns Aydano. Textos como esse é que nos ajudam na reflexão de nós mesmos até porque, todos nós cultuamos e muitos de nós se inspiram nesses idolos e até se identificam com eles através da sua arte como Roberto Carlos, ou como no caso do exporte em que Pelé é o ATLETA DO SÉCULO, e que nesse caso a sua ausência da Copa, da Olimpíada, e da Paraolimpíada foi pior que o Rei Roberto visto que este, ainda autorizou sua cancão ” É PRECISO SABER VIVER ” mas no caso de Pelé, o problema sempre foi o Edson quando ele parou de jogar, rsrsrs. Abs.

  4. Marcelo Cruz disse:

    Respeito sua opinião sobre o Pelé e Roberto Carlos, mas me permita discordar dela, nesse caso, julgar o indivíduo sem empatia pelo julgado, sem conhecer suas razões é, para mim na origem, julgamento parcial. Já que fez citação a canções, menciono outra de outro mestre, Djavan: “Só eu sei as esquinas porque passei.. Só eu sei.”

  5. Maria Vitarelli disse:

    Há motivos subjetivos, de ordem psíquica, muitas vezes. Por esse motivo , julgar fica difícil.
    Seria , é verdade, uma apoteose dentro da apoteótica abertura dos Paraolímpicos. Quem pode entender, com precisão, a alma humana? Aproveitemos, somente os pontos positivos dela.

  6. GERALDO TACIO VIEIRA FALCAO VIEIRA FALCAO50 disse:

    SÃO APENAS DUAS PESSOAS, EGOCENTRICAS, QUE ALGUNS INTITULAM-SE DE REIS.NO BRASIL TEM MUITOS. ROBERTO CARLOS UM REI ALHEIO AO QUE SE PASSA NO BRASIL,SEMPRE EM CIMA DO MURO, EGOISTA AO EXTREMO. PELE, UM ATLETA QUE FOI TÃO BOM QUANTO GARRINCHA. ESTE SIM DE CARATER DUVIDOSO, NÃO É EXEMPLO PRA NINGUEM. NA BALANÇA PESAM IGUAIS.

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