O transporte de que o Rio precisa

Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando

CPI dos ônibus é oportunidade para criar um sistema de qualidade para todos

Por Clarisse Linke | ODS 11 • Publicada em 16 de outubro de 2017 - 16:48 • Atualizada em 24 de setembro de 2019 - 19:05

Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando
A omissão dos governos turbinou as vans, operadas, boa parte das vezes, por milicianos. Foto Custódio Coimbra
A omissão dos governos turbinou as vans, operadas, boa parte das vezes, por milicianos. Foto Custódio Coimbra

Em 2013 tudo foi mais explosivo e engajado, as lutas nas ruas tinham voz. Em algum momento as bandeiras ficaram confusas, mas ninguém se esquece como as jornadas começaram: primeiro foram os 20 centavos, e logo em seguida foi o desejo de qualidade de vida numa cidade menos excludente e mais justa. Imediatamente, no Rio de Janeiro, o então vereador Eliomar Coelho aprovou a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Ônibus. Com cinco eixos de investigação, a CPI baseava-se numa apuração do Tribunal de Contas do Município (TCM) sobre o processo licitatório dos ônibus do Rio em 2010.

O processo terminou engavetado, mas a pressão das ruas fez com que o então prefeito Eduardo Paes contratasse em 2014 a PwC, uma empresa de auditoria internacional, com o objetivo de averiguar e fiscalizar os contratos e a revisão tarifária na cidade. Somente em 2017 os resultados deste relatório começam a aparecer, ainda tímidos e incompletos.

O transporte coletivo representa metade das 13,8 milhões de viagens que acontecem diariamente na cidade. Dessas, 80% são realizadas em ônibus municipais. São 5,5 milhões de viagens diárias num modo de transporte que, principalmente para quem mora na periferia, representa “um mal necessário”: “o veneno da boca da cobra / a lixeira do luxo que sobra”, diria Cazuza

Eles desnudam questões que estão na raiz dos problemas enfrentados pelos usuários do serviço de transportes prestado no Rio. Coloca em números o que todos os cariocas vivem na pele há anos. Em 2014, tínhamos 541 linhas rodando na cidade com uma frota total de 8.819 ônibus. No entanto, 54% destas linhas tinham trajetos sobrepostos, 70% dos passageiros estavam concentrados em ⅓ delas e 59% tinham frota abaixo do definido em contrato. Os intervalos entre ônibus não são obedecidos. A ultrapassagem de velocidade dos ônibus acima 80 km/h é a norma, principalmente no horário noturno.

O conceito de mobilidade urbana está para além da análise de um modal específico de transportes. Mobilidade tem a ver com como usamos, ocupamos, navegamos no território. Uma cidade que permite mobilidade aos seus moradores é uma cidade que cumpre o seu papel: o de garantir um ambiente e um contexto no qual todos possamos florescer.

Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando. Foto Custódio Coimbra
Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando. Foto Custódio Coimbra

Com o espraiamento das cidades brasileiras, as oportunidades que são dadas a quem vive na periferia são, não apenas limitadoras, mas acima de tudo opressoras. A realidade é de um desequilíbrio territorial acirrado, com emprego, educação, saúde, cultura e serviços concentrados em poucas áreas da cidade.

Dados de 2013 do Plano Diretor de Transportes Urbanos (PDTU) do Rio apontam que o transporte coletivo representa metade das 13,8 milhões de viagens que acontecem diariamente na cidade. Dessas, 80% são realizadas em ônibus municipais, demonstrando a importância deste modal na rede de transportes. Pela sua permeabilidade na cidade e pelo papel de alimentar os sistemas estruturantes. No entanto, estamos falando de 5,5 milhões de viagens diárias num modo de transporte que, principalmente para quem mora na periferia, representa “um mal necessário”: “o veneno da boca da cobra / a lixeira do luxo que sobra”, diria Cazuza.

Na semana passada, dados do serviço de ouvidoria da Prefeitura revelaram que a má conservação dos ônibus – com pneus carecas, bancos soltos e sujos – é a principal reclamação de transportes no Portal 1746. Uma pesquisa da FGV de 2015 sobre o nível de satisfação com o serviço no Brasil também trouxe informações alarmantes: 77% estavam insatisfeitos ou muito insatisfeitos com o transporte público no Rio de Janeiro, perdendo somente para Brasília, com 82%. Qualquer gestor de marketing sabe que este índice de rejeição de um produto ou serviço é absolutamente inaceitável. Por que então vamos tolerá-lo no transporte público?

Segundo a PwC, na época do estudo era possível reduzir em até R$ 2 a tarifa se feita a revisão total da malha envolvendo linhas e integração, além da adoção de medidas de gestão e operação e de combate à fraude. Considero que este é um dos principais pontos sobre o qual devemos nos aprofundar, principalmente ao considerar que pessoas com renda acima de 20 salários mínimos fazem mais que o dobro de viagens – não só de ônibus, mas em veículos em geral – por dia do que pessoas que ganham até 2 salários, tanto em relação ao custo quanto ao tempo de viagem.

Como resultado, o veículo motorizado continua sendo visto como a solução para o acesso à cidade, ainda que seja necessário endividar-se para adquiri-lo. Entre 2001 e 2016 a taxa de motorização do Rio aumentou em 72%, chegando a 274% quando consideramos apenas as motocicletas. O impacto todos conhecemos bem: congestionamentos, longos tempos de viagem diária, aumento da emissão de poluentes locais, de gases de efeito estufa e, principalmente, mais mortes no trânsito. E segue o baile da qualidade de vida na cidade que se degenera a olhos nus.

Os surfistas rodoviários do Rio, correndo risco na Avenida Brasil. Foto Apu Gomes/AFP
Os surfistas rodoviários do Rio, correndo risco na Avenida Brasil. Foto Apu Gomes/AFP

A nova CPI dos Ônibus, aberta depois das denúncias da Lava Jato, dá uma chance para que o Legislativo, o Executivo e a sociedade civil não apenas identifiquem os desafios (e apontem as fraudes) do sistema atual, mas acima de tudo encontrem oportunidades para viabilizar um sistema de qualidade para todos.

A discussão sobre a planilha que define a tarifa está calcada num modelo antigo, de 1965, atualizado em 1996, mas já com 20 anos de defasagem. Ainda que a adoção da fórmula paramétrica possa trazer neutralidade para o processo de reajuste tarifário, pois é feito com índices inflacionários do setor aferidos pela FGV e IBGE, o valor base do contrato foi um legado do modelo anterior, com base em dados de custos fornecidos pelas empresas, num modelo que leva à concentração de mercado (garagens, carrocerias, combustível, gestão de terminais, bilhetagem, GPS, sistema de publicidade por TV, etc) e indica conflitos de interesse. Já há novos formatos para a definição de tarifa e modelo de remuneração em discussão, que não estão calcados somente no número de passageiros transportados. A ANTP lançou recentemente uma planilha dos custos dos serviços de transporte público por ônibus, atualizando e incorporando novos parâmetros de cálculo.

Fundamental na discussão sobre definição da tarifa é resgatar o entendimento de que é o poder público quem tem autoridade para desenhar e ajustar o sistema necessário (e seus custos), e isso deve ser feito junto com a sociedade. Não podemos minimizar o papel do Estado e delegar poder excessivo às empresas. O operador não pode ser quem fornece dados sobre custos sem auditorias independentes. Do mesmo modo, o operador não pode ser quem modela o sistema e quem define as linhas e frotas de forma independente. O operador não pode regular, planejar e controlar o sistema, acumulando funções de bilhetagem e operação. É fundamental termos um poder público capacitado e bem equipado para modelar e fiscalizar, de forma a ter a garantia do bem comum assegurada.

Entre 2001 e 2016 a taxa de motorização do Rio aumentou em 72%, chegando a 274% quando consideramos apenas as motocicletas. O impacto todos conhecemos bem: congestionamentos, longos tempos de viagem diária, aumento da emissão de poluentes locais, de gases de efeito estufa e, principalmente, mais mortes no trânsito

A discussão precisa revisitar a atribuição entre os entes federativos, garantindo uma integração institucional efetiva, e que reverta a fragilidade das estruturas e instâncias de governança metropolitana, assim como a competição por passageiros entre os diversos modais. Este arranjo se materializará na integração tarifária, física, operacional, que afinal de contas sabemos que quando há interesse funcionam. Grandes eventos como as Olimpíadas e a Copa nos mostraram que o sistema pode funcionar de forma integrada, bastando haver para isso interesse, planejamento e investimento.

Indicadores de qualidade de serviço são fundamentais para monitorar acessibilidade, tempo de viagem, tarifa, conforto, segurança, manutenção, meio-ambiente, integração, entre tantos outros aspectos. Mas precisam ser fiscalizados e as multas não podem ser usadas como barganha. Estes indicadores precisam ser públicos e de fácil visualização para a população acompanhar. Territorializados, de modo que todos consigam enxergar as disparidades e priorizar formas de revertê-las.

Os indicadores também precisam ser passíveis de serem revistos e aprimorados de forma transparente, dado que os períodos de concessão são longos (20 anos). É preciso ajustar a necessidade da população à inovação e às pressões externas, como por exemplo os impactos da mudança climática, os novos sistemas de mobilidade que surgem e podem alterar a demanda, os vetores de crescimento da cidade que alteram a intensidade e o uso do solo e as  novas tecnologias e modelos de negócio.

Há inúmeras estratégias para ampliar o acesso justo à cidade, muitas já testadas e validadas em diversas cidades. Além da integração entre modais e com modos de deslocamento ativo (a pé e de bicicleta), destacam-se políticas tarifárias subsidiadas e/ou com subsídio a grupos específicos; e a prioridade no espaço viário para o transporte público, principalmente nas zonas mais periféricas e nas vias mais congestionadas (apenas 2% das vias da cidade tem algum tipo de preferência para o transporte coletivo!). A mais importante estratégia é a integração das políticas urbanas, de modo a garantir uso do solo que trate transporte, moradia e emprego de forma indissociável.

A demanda por transporte público é cada vez maior. Acima de tudo, é uma demanda central para se viabilizar a vida urbana democrática. É o desejo de reconhecimento de cada cidadão como ser humano digno, detentor de direitos. Apenas com transparência plena de arranjos e de dados, capacidade efetiva do poder público e envolvimento da sociedade podemos avançar para uma democracia efetivamente participativa, onde todos contribuem na negociação sobre o que priorizar na cidade e onde alocar recursos públicos.

Precisamos reverter este quadro de marcha lenta e usar a investigação em curso como uma oportunidade de desenhar uma cidade por todos, para todos.

Vale a leitura: especial Catraca da Agência Publica

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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