A revolução dos transportes e a mobilidade do futuro

O transporte individual responde por 77% do total de emissões de gases de efeito estufa do setor de transporte de passageiros. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

Combinação de veículos elétricos, autônomos e compartilhados deve mudar a cara das nossas cidades

Por Clarisse Linke | ODS 11 • Publicada em 21 de maio de 2018 - 08:52 • Atualizada em 24 de setembro de 2019 - 19:03

O transporte individual responde por 77% do total de emissões de gases de efeito estufa do setor de transporte de passageiros. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
O transporte individual responde por 77% do total de emissões de gases de efeito estufa do setor de transporte de passageiros. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
O transporte individual responde por 77% do total de emissões de gases de efeito estufa do setor de transporte de passageiros. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

Até onde se tem notícia, nenhum tiro foi disparado e nem governos foram depostos. No entanto, neste exato momento, o mundo acompanha o desenrolar de três revoluções fundamentais na área de transportes: a eletrificação, a automação e o compartilhamento. Nas próximas três décadas, estes movimentos, juntos ou separadamente, mudarão de forma radical a vida nas grandes cidades e a chamada mobilidade urbana. Neste contexto, é importante ressaltar também a mudança de foco: do transporte individual e egoísta para o transporte público, eficiente, barato, rápido e solidário.

O Brasil ainda se encontra entre os principais mercados de veículos do mundo e mais da metade das vendas da América Latina, com uma frota de 43,6 milhões de veículos. Projeções da EPE indicam que frota de veículos no Brasil triplicará nos próximos anos, com um total de 136,7 milhões de unidades em 2050.

E o Brasil? Bem, por aqui a pauta continua a mesma: qual será o tamanho do incentivo fiscal que a indústria automobilística receberá nos próximos anos. O novo pacote passa a se chamar Rota 2030, em substituição ao Inovar-Auto, que vigorou de 2012 até 2017. O foco do Rota é mais restrito do que o do Inovar-Auto – que chegou a ser considerado ilegal pela Organização Mundial do Comércio por impor requisitos protecionistas de nacionalização de componentes em troca de impostos menores. O Rota define metas de investimento em inovação e eficiência energética para a obtenção dos descontos tributários. Pelo projeto original, as montadoras têm que investir 1,2% de seu faturamento por ano para aderir ao programa.

O Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) e  o setor defendem um pacote de incentivos que chegaria a um total de R$ 1,5 bilhão. Mas o entendimento da Fazenda, respaldado pelo Planalto, é que no primeiro trimestre de 2018 já houve uma retomada do setor, independente de incentivos. Neste período, a produção de veículos no país cresceu 14,6%, o mercado interno registrou expansão de 15,6% e as exportações bateram mais um recorde histórico. Segundo o Conselho Internacional de Transporte Limpo (ICCT), apesar da crise econômica desde 2014, o Brasil ainda se encontra entre os principais mercados de veículos do mundo e mais da metade das vendas da América Latina, com uma frota de 43,6 milhões de veículos. Projeções da EPE indicam que frota de veículos no Brasil triplicará nos próximos anos, com um total de 136,7 milhões de unidades em 2050.

Em 2017, foram 1,2 milhões de veículos elétricos vendidos. no mundo. Foto PHILIPPE ROYER / ONLY FRANCE
Em 2017, foram 1,2 milhões de veículos elétricos vendidos. no mundo. Foto PHILIPPE ROYER / ONLY FRANCE

Nos cinco anos de vigência do Inovar-Auto, o governo deixou de arrecadar R$ 7,5 bilhões em troca de pesquisa para avanços na tecnologia veicular com renovação de linhas de produtos, que que tivessem matriz energética mais sustentável. No entanto, ainda com todo este investimento, o mercado brasileiro caminha a passos de tartaruga. Dados da Anfavea apontam que em 2017, os  veículos elétricos e híbridos representaram apenas 0,15% do total de licenciamentos de veículos leves do país, em sua maioria importados.

Os investimentos vinculados ao Inovar-Auto e ao Rota 2030 têm como pano de fundo o cenário de mudança climática global e o Acordo de Paris, que deve entrar em vigor em dois anos. Ambos se concentram no incentivo ao desenvolvimento tecnológico para a redução da emissão de gases poluentes. As metas acordadas em 2015 foram de manter o aumento entre 1.5 o e 2 o Celsius (em relação aos níveis pré-Revolução Industrial). Mas análises recentes mostram que, ao atingir todas as metas estipuladas pelos países, o aumento de temperatura ficará em 3o Celsius. Ou seja, os compromissos atuais não serão suficientes. Por isso, o objetivo para a COP 24 em Katowice, na Polônia, em dezembro de 2019, será elevar o grau de ambição dos acordos nacionais. No Brasil, as metas de abatimento de emissão de CO2 foram estipuladas em 37% até 2025 e 43% até 2030. As atividades de transporte são responsáveis por 46% das emissões do setor de energia, sendo que o transporte motorizado individual aparece com uma participação de 77% do total de emissões no transporte de passageiros.

Os programas de incentivo à indústria automobilística, portanto, devem ser mais incisivos para resultar na mitigação desejada. O setor, no entanto, demonstra um apetite bem mais tímido em relação à tendência internacional rumo à eletrificação. Discussões no âmbito do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima indicam que isso reflete uma intenção de reserva do mercado brasileiro para a sobrevida dos veículos movidos a combustível fóssil.

No resto do planeta, no entanto, a eletrificação é a pauta do dia. Em 2017, foram 1,2 milhões de veículos elétricos vendidos. Já são 3 milhões de veículos em circulação e 200 milhões de ciclomotores e bicicletas elétricas. Cinquenta por cento das vendas anuais acontecem na China.

A primeira revolução: eletrificação

A eletrificação mais avança onde se observam políticas governamentais robustas. Principalmente em países europeus e na China. França, Holanda, Noruega e Reino Unido anunciaram que a venda de novos carros a gasolina e diesel serão proibidas a partir de 2040, 2035, 2025 e 2040, respectivamente.  China planeja que os veículos elétricos e híbridos correspondam a pelo menos 20% das vendas até 2025.

No âmbito das cidades, são diversas as medidas em curso. Amsterdam, Hanghzou, Pune, Chennai, Cidade do México e Londres estão com programas focados em táxis. Em Londres, a renovação da licença será condicionada à mudança do veículo para tecnologia limpa. São Francisco incentiva aluguel de carros elétricos. Em Estocolmo, o abastecimento será grátis para carros elétricos. Los Angeles, Oslo e diversas cidades chinesas têm faixas dedicadas somente para veículos elétricos.

Certamente a eletrificação dos veículos pode reduzir as emissões de CO2. No entanto, para que a eletrificação tenha o máximo de benefícios, a geração de energia deve ser de fato descarbonizada.

Projeções da EPE indicam que frota de veículos no Brasil triplicará nos próximos anos, com um total de 136,7 milhões de unidades em 2050. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
Projeções da EPE indicam que frota de veículos no Brasil triplicará nos próximos anos, com um total de 136,7 milhões de unidades em 2050. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

A segunda revolução: automação

Em compasso com a eletrificação, a indústria também caminha a passos largos com a discussão da automação. Estima-se que até 2020, veículos com nível de automação 4 estejam circulando em frotas comerciais. Neste nível, o veículo é 100% autônomo, mas o carro pode solicitar que o motorista volte a dirigir em algumas ocasiões. Nissan, Ford, GM, Chrysler, Volvo, Uber, Daimler, Hyundai estão todas com veículos em teste. A automação pode fornecer benefícios importantes de segurança, reduzir custos de mão-de-obra e possibilitar viagens mais baratas com uso mais produtivo do tempo. No entanto, diminuindo o custo da viagem em termos de tempo e dinheiro, a automação provavelmente induzirá mais viagens e reduzirá drasticamente o número de empregos no transporte. Além de incentivar as pessoas a viverem mais longe.

O Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) desenvolveu um estudo junto com a Universidade UC Davis para entender se a combinação de eletrificação com automação resulta no abatimento de emissões de CO2, e como impacta de forma mais ampla em objetivos sociais, econômicos e ambientais até 2050. Somente mitigação/redução de emissão de CO2 não basta para resolver o problema de mobilidade urbana das cidades do futuro. Precisamos produzir sistemas que sejam inclusivos e acessíveis a toda a população.

A conclusão deve deixar todos em alerta: sem uma mudança em direção a um novo modelo de negócio, com compartilhamento, com investimentos para aumentar o uso de transporte público e transportes ativos, as revoluções na tecnologia veicular podem aumentar significativamente o congestionamento e a expansão urbana, potencialmente aumentando também a emissão de CO2.

A terceira revolução: a mobilidade compartilhada

Assim, precisamos trazer para este caldo o que chamamos de uma terceira revolução: a mobilidade compartilhada. O transporte público sempre foi compartilhado, e a carona ou o táxi não são modelos exatamente novos de deslocamento. Mas a tecnologia entra como um elemento novo para atrair mais viajantes para o modo compartilhado e diminuir drasticamente o número de carros nas ruas. Ao tirar carros das ruas, abre-se espaço para outros usos e modos de transporte. Um estudo recente do MIT demonstrou que uma frota de 3 mil veículos com capacidade de 4 passageiros, ou 2.000 veículos com capacidade de 10 passageiros resolveria 98% das viagens atualmente feitas por 14.000 táxis em NYC, com tempo de espera de apenas 2.7 minutos. Uma simulação do International Transport Forum em Lisboa indicou que todas as viagens diárias da cidade poderiam ser resolvidas com apenas 10% do número de veículos atuais, se combinamos em veículos de 8 e 16 lugares. Note que isso é diferente de falarmos de serviços ditos de compartilhamento como Uber ou afins. Estes serviços, nos moldes atuais (com exceção do Uber Pool), são para uso individual. Inclusive em algumas cidades americanas, já há discussões sobre o impacto do aumento do uso destes serviços na diminuição no uso de ônibus e metrô.

A mobilidade compartilhada, seja através de viagens compartilhadas ou transporte público, pode levar a um uso mais eficiente do espaço urbano, reduzir os congestionamentos, possibilitar mais caminhadas e ciclovias, reduzir o uso de energia e emissões e melhorar a habitabilidade urbana. Contudo, isso exigiria grandes aumentos nos fatores de carga (passageiros por viagem de veículo) e uma série de políticas sólidas para a qualificação do transporte público e o desestímulo ao uso do automóvel privado.

Cenário futuro das três revoluções coordenadas

Há um descompasso nítido no avanço das frotas de ônibus, carros e caminhões elétricos na China em relação às demais regiões do mundo, onde o papel da indústria é fundamental, com envolvimento direto do Estado. Não é à toa que 99% da frota de ônibus elétricos do mundo está na China. Na cidade de Shenzen, 100% da frota de 16.000 ônibus são elétricos.

Esta semana, a Prefeitura de Nova Iorque anunciou que 100% da frota pública de ônibus será elétrica até 2040. A ação é também uma resposta à questão da justiça ambiental. Um relatório divulgado no início do mês pela New York City Environmental Justice Alliance revelou que 75% das garagens de ônibus de Nova York se localizam em comunidades negras, mais afetadas pelas emissões de poluentes locais. A renovação da frota impactará diretamente as políticas de saúde da cidade, onde estima-se que a troca de cada ônibus diesel por um elétrico reduziria os custos com doenças respiratórias em cerca de US$ 150 mil.

Hoje, há no Brasil três fábricas de ônibus elétricos ou híbridos: Eletra (São Bernardo do Campo, SP), Volvo (Curitiba, PR) e BYD (Campinas, SP). No entanto, as discussões de uma frota substancial de coletivos menos poluentes estão limitadas a poucas cidades, em ações pontuais. Em São Paulo, a licitação para a nova concessão faz exigências quanto à tecnologia da frota, de modo que em 20 anos, a emissão de CO2, de material particulado e de NOx, seja 100%, 95% e 95% abatidas, respectivamente. Esta obrigatoriedade, definida pela Lei do Clima (Lei Nº 16802 de 17/01/2018) é de suma importância para conseguirmos mudar a frota da cidade. Considerando que o investimento inicial para esta transição é alto, não basta o Estado criar obrigações, é preciso ser indutor do processo, estimulando, facilitando e até mesmo participando diretamente, de modo a criar circunstâncias de mercado que apoiem o transporte limpo e coletivo do futuro.

Ao pensar no futuro que combina eletrificação, automação e compartilhamento, com foco no transporte público e nos transportes ativos, é possível prever:

  • Menor demanda por viagens devido a distâncias mais curtas em cidades mais compactas;
  • Redução no número de veículos em circulação;
  • Mais opções de transporte, com mais deslocamentos a pé e por bicicleta, dadas condições mais seguras e melhor infraestrutura;
  • Parcela maior de viagens proporcionada por modos mais eficientes (sistemas de ônibus e trilhos);
  • Fator de carga média maior (mais pessoas por viagem);
  • Uso mais intenso do veículo, exigindo menos veículos para atender às necessidades de viagens de passageiros (já que os veículos pessoais permanecem ociosos mais de 90% do tempo); e
  • Redução dos requisitos de estacionamento e construção de estradas a partir de menos viagens de veículos, com redução de custos associados.

Com estes três processos coordenados, temos aumento no uso de transporte público e transporte ativo como resultado de políticas, com:

  • Redução do uso global de energia do transporte urbano de passageiros em mais de 70%
  • Redução das emissões de CO2 em mais de 80%
  • Diminuição dos custos estimados dos veículos, infraestrutura e operação de sistema de transporte em mais de 40%
  • Economia de cerca de US$ 5 trilhões por ano até 2050, melhorando a habitabilidade e aumentando a probabilidade de alcançar as metas do Acordo de Paris.

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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