Banda larga: não ao ‘cibergolpe’

Ciberespeaço é um terreno de descobertas, que está prestes a ser limitado

Tentativa de limitar acesso fixo à internet é risco para democratização do conhecimento

Por André Machado | ODS 12 • Publicada em 27 de abril de 2016 - 08:00 • Atualizada em 27 de abril de 2016 - 11:57

Ciberespeaço é um terreno de descobertas, que está prestes a ser limitado
Ciberespeaço é um terreno de descobertas, que está prestes a ser limitado
Ciberespeaço é um terreno de descobertas, que pode estar prestes a ser limitado

Depois de vários dias de críticas dos usuários à intenção das operadoras de telecomunicações de criar franquias de dados na banda larga de internet fixa, a Anatel pareceu ter acordado para a gravidade do problema e proibiu as empresas, por tempo indeterminado, de “reduzir a velocidade, suspender o serviço ou cobrar pelo tráfego excedente nos casos em que os consumidores utilizarem toda a franquia contratada, ainda que tais ações estejam previstas em contrato de adesão ou plano de serviço”, conforme explicitou em nota. A agência afirmou que vai examinar o assunto, “com base nas manifestações recebidas pelo órgão”.

Mas a ameaça não está totalmente afastada. Um forte aspecto do debate é o obscurantismo da iniciativa. Para o advogado Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), no Rio, não se trata apenas de reduzir o acesso a entretenimento, mas ao conhecimento em geral.

– A limitação da banda larga em franquias é ruim para a educação à distância, que cada vez mais se baseia fortemente em conteúdo de áudios e vídeos. E abrange uma grande faixa etária, que vai desde jovens se preparando para um vestibular até adultos estudando em conteúdo multimídia on-line para concursos – diz Affonso. – Por outro lado, a limitação da banda nas próprias escolas pode tirar a internet da sala de aula e prejudicar os estudantes.

Ocorre que o ciberespaço é um terreno de eternas descobertas: permanecer nele é uma forma de ampliar o que se sabe, de uma forma diferente de estudar “analogicamente” e linearmente em livros, por exemplo. De hiperlink em hiperlink, o usuário aprofunda suas pesquisas. O YouTube tem documentários de época importantes e videoaulas sobre diversos temas. Muitas vezes também encontramos soluções para um problema na impressora ou dicas para remover manualmente um vírus de computador no site. Para quem é músico (como este que vos escreve, que milita nas notas desde adolescente além de ser jornalista), há um sem-fim de tutoriais mostrando como tocar canções ou solos.

Com tal declaração, ele simplesmente joga a culpa em cima de uma comunidade específica, sem mostrar estudos quanto aos reais gargalos neste sentido, e ainda desmerece uma das principais indústrias do mundo e que ganha importância no Brasil

Da mesma forma se pode falar do Netflix e afins: há documentários diversos, além de séries e filmes clássicos além dos lançamentos. E não se pode chamar isso apenas de entretenimento. Trata-se de cultura, numa oferta que avança muito mais rapidamente que a que vemos na mídia tradicional, mesmo na televisão paga, ainda muito lenta para acompanhar a velocidade planetária de acesso à informação. A própria mídia tradicional se vale da internet para que seus espectadores se inteirem de filmes ou episódios de séries que perderam na agenda engessada da programação. Recursos como Telecine Play e HBO Go permitem reencontrar na rede os programas favoritos que não se pôde assistir por esse ou aquele motivo.

O presidente da Anatel, João Rezende, afirmara anteriormente em entrevista coletiva que quem joga online gasta muita banda. Mas os games –  uma indústria de dezenas de bilhões de dólares que hoje fatura mais do que Hollywood – são hoje uma referência cultural tão importante quanto a literatura ou o cinema. Eles influenciam (e criam) narrativas, a estética de filmes e séries,  e desempenham papel fundamental na moderna ficção científica. Chega a ser risível desprezá-los como mera diversão.

– Com tal declaração, ele simplesmente joga a culpa em cima de uma comunidade específica, sem mostrar estudos quanto aos reais gargalos neste sentido, e ainda desmerece uma das principais indústrias do mundo e que ganha importância no Brasil – afirma Carlos  Affonso, do ITS.

Justamente num momento em que a internet se firma como a grande alternativa informativa a uma mídia ainda imersa no velho mundo industrial, é necessário se perguntar se a ideia de limitar a franquia de banda larga também não constitui atentado à liberdade de expressão. Para ficar num exemplo bem atual, a tese de que o corrente processo de impeachment autorizado contra a presidente Dilma Rousseff seria na verdade um golpe branco começou a ganhar força na internet e influenciou a mídia internacional – que num primeiro momento acolheu apenas a tese da insatisfação com o governo representada pelas manifestações a partir de junho de 2013, mas recentemente passou a alertar para o uso político delas por um Congresso Nacional sem idoneidade para conduzir um processo com correção contra a presidente. Foi nas redes sociais (repletas de vídeos, áudios e recursos multimídia, consumidores de banda, portanto) que este outro lado político da moeda foi mais mostrado, pois na mídia tradicional do país ele apareceu bem menos, e sempre com um viés negativo.

Finalmente, há ainda a questão da violação do Marco Civil da Internet. Corre-se o risco de ver o Marco Civil virar uma daquelas leis que “não pegaram”, mesmo dizendo textualmente no capítulo III, que trata da neutralidade da rede, princípio fundamental:

“Art. 9º. O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

“§ 2º. Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º., o responsável mencionado no caput deve:

I – abster-se de causar dano aos usuários (…);

II – agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
(…)
IV – oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.”

“§ 3º. Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.”

O artigo 7º do capítulo II do Marco, que trata dos direitos dos usuários, também prevê:

“IV – não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização;

V – manutenção da qualidade contratada da conexão à internet.”

Para o deputado federal Alessandro Molon (Rede-RJ), que relatou o projeto do Marco Civil da Internet, a possibilidade de limitação da franquia é, definitivamente, abusiva.

– Novamente a ganância das operadoras coloca em risco a finalidade social da internet no Brasil – afirma Molon, que prevê a possibilidade de a Justiça brasileira entrar no circuito. – Se a Justiça não barrar esta tentativa, o uso da internet para a educação, a pesquisa, a inovação, a cultura e o lazer em nosso país estará seriamente ameaçado. A Justiça precisa proteger o cidadão brasileiro.

Reprimir o uso da internet (pois é disso que se trata, ao fim e ao cabo) representa, assim, um retrocesso para a difusão de dados, conhecimento e sabedoria no Brasil. Esperemos que esse “cibergolpe” não vingue.

André Machado

Jornalista há mais de três décadas, trabalhou em locais como a Rádio Fluminense FM, o Grupo Manchete e o jornal O Globo, onde cobriu tecnologia no caderno Informática Etc e na editoria Digital & Mídia. Publicou livros sobre o tema e também de ficção ("Daniela e outras histórias", contos, Multifoco, 2012).

Nota da Redação: André Machado morreu em 2021, vítima da covid-19.

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