#RioéRua – O Buraco do Lume e 100 anos de cobiça no Centro

A área do antigo Buraco do Lume é a mais verde, vizinha à Praça Mario Lago, com seu anfiteatro: alvo de cobiça para construção de prédio (Foto: Suellen Lessa/Alerj)

Nova lei permite construção de prédio em área remanescente do desmonte do Morro do Castelo e adotada como praça pelos cariocas

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 17 de agosto de 2020 - 10:29 • Atualizada em 17 de agosto de 2020 - 11:20

A área do antigo Buraco do Lume é a mais verde, vizinha à Praça Mario Lago, com seu anfiteatro: alvo de cobiça para construção de prédio (Foto: Suellen Lessa/Alerj)

No dia 17 de agosto de 1920, exatamente 100 anos antes desta segunda-feira, Carlos Sampaio, prefeito do então Distrito Federal, assinou o decreto 1.451 determinando o arrasamento do Morro do Castelo, de onde a cidade do Rio de Janeiro começou a se organizar, a partir de 1567, dois anos após sua fundação. No alto do morro, que já havia perdido uma parte na construção da Avenida Rio Branco, ainda estavam a Igreja de São Sebastião, erguida em homenagem ao padroeiro do Rio e antiga Sé, o marco de fundação da cidade, e o antigo Colégio dos Jesuítas, já transformado em hospital. No mesmo decreto, o prefeito determinava a desapropriação dos terrenos e a demolição das moradias – cerca de 4 mil pessoas, pobres na maioria, vivia no Morro do Castelo. O arrasamento do monte arrasaria também as finanças da cidade, mas o prefeito Sampaio garantia que o dinheiro gasto na obra seria recuperado com a venda dos terrenos da futura área plana.

Em 1920, o morro tinha como limites a Rio Branco, a Rua Santa Luzia, ainda perto do mar, a Rua da Misericórdia, arrasada junto com o morro, e a Rua São José, que teve seu lado ímpar, vizinho à encosta, derrubado. Agora, 100 anos depois do decreto de demolição, esta área da São José, originária do monte histórico, ainda é objeto de cobiça. No projeto para flexibilizar a legislação urbana do Rio de Janeiro, em plena pandemia (PLC 174), a prefeitura introduziu e os vereadores aprovaram dispositivo que permite a construção de residências e estabelecimentos comerciais no Buraco do Lume, terreno vizinho à Praça Mário Lago.  Ao enviar o projeto, o prefeito Crivella alegou que as mudanças na legislação propostas tinham como objetivo aumentar a arrecadação – esta permissão para construir na praça estava embutida em uma emenda e passou despercebida até pelos vereadores aliados. Apesar da esperteza, duvido que o prefeito alcance seu objetivo de ver subir outro edifício – comercial ou residencial – no coração do Centro. A história mostra que não é bom mexer com esse buraco…

Vamos retroceder 10 décadas. Depois de dois anos de obras, o Morro do Castelo não existia mais: o material retirado no desmonte serviu para fazer aterros na Urca, na Lagoa e nas áreas do Centro que abrigaram a exposição do Centenário da Independência do Brasil. Demorou para área ser urbanizada; as alquebradas finanças da prefeitura não permitiam. Aos poucos, no lugar do monte, foi surgindo a Esplanada do Castelo: os prefeitos começaram a abrir novas ruas; no Estado Novo, foram construídos prédios para os ministérios da Educação, da Fazenda e do Trabalho; apareceram imóveis comerciais e edifícios de escritórios. Até o final da década de 1960, a área mais aberta do antigo monte era o trecho entre as avenidas Antônio Carlos – em frente à Igreja de São José e ao recém-construído Edifício Estácio de Sá – e Rio Branco: ali ficavam o Terminal Erasmo Braga, para ônibus, estacionamentos para automóveis e algumas ruínas de antigas construções do lado ímpar da São José – 50 anos depois da demolição, ainda havia vestígios do Morro do Castelo.

No dia 10 de maio de 1970, o governo da Guanabara começou a derrubar o modesto terminal para a construção do Edifício Garagem Menezes Cortes. Em junho, a área pública vizinha – entre as ruas São José e Nilo Peçanha – foi incorporada ao patrimônio do Banco do Estado do Guanabara. Em agosto, mudou-se a legislação urbana para permitir a edificação em um lote, vizinho ao futuro terminal, e uma praça no espaço triangular contíguo, onde São José e Nilo Peçanha encontram a Rio Branco. No fim do ano de 1970, o BEG havia vendido o lote para o grupo Lume, que pretendia erguer um prédio de 20 andares. A área foi cercada por tapumes e as obras começaram com escavações para as fundações e as garagens. E foi só: quando terminaram as obras de urbanização da praça, batizada de Melvin Jones, terminaram em 1977, o grupo empresarial estava em situação falimentar. A área para o fracassado edifício, cercada ainda por tapumes e com suas escavações constantemente alagadas, ganhara o apelido de Buraco do Lume. Com a falência, a propriedade voltou para o Banerj, sucessor do BEG.

Cordão da Bola Laranja e a folia no Buraco do Lume: ponto de encontro carnavalesco no Centro do RIo (Foto: Oscar Valporto)
Cordão da Bola Laranja e a folia no Buraco do Lume: ponto de encontro carnavalesco no Centro do RIo (Foto: Oscar Valporto)

Quando a década seguinte chegou, o buraco estava aterrado e seu terreno incorporado à praça urbanizada. Na área do projeto do edifício, a prefeitura fez área gramada e plantou algumas árvores. Em 1986, o decreto 6.159, do então prefeito Saturnino Braga, modificou os parâmetros para construção no terreno, permitindo apenas equipamentos culturais naquele espaço: à época, todo o triângulo formado pelas ruas São José, Quitanda e Nilo Peçanha já era chamado de Buraco do Lume por todos os cariocas, o que não mudou nem mesmo no novo século quando a praça ganhou o nome do carioquíssimo ator e compositor Mário Lago.

No Lume, partidos de esquerda fazem atos públicos e pequenos comícios. No pequeno anfiteatro do Lume, criado após a última reforma da praça, blocos – Embaixadores da Folia, Vem Cá, Minha Flor, Cordão da Bola Laranja – concentram para seus desfiles antes e durante carnaval. No Lume, durante a semana, ambulantes vendem quase tudo, entregadores e auxiliares de escritório se encontram para almoçar, aposentados reclamam do INSS. Das mesas ou do balcão do Café e Bar Gaúcho, na esquina da São José com a Rodrigo Silva, ganha-se uma vista privilegiada do movimento intenso dessa praça meio improvisada que resume um pouco da bagunça urbana histórica da cidade.

Chope e cachorro quente de linguiça em mesa na calçada: combinação matadora do Café Gaúcho, há 85 anos em sobrado no Centro do Rio: (Foto: Oscar Valporto)
Chope e cachorro quente de linguiça em mesa na calçada do Café Gaúcho: vista do movimento do Buraco do Lume (ou Praça Mario Lago) no coração do Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

Importante recapitular: o terreno do Buraco é remanescente do arrasamento do Morro do Castelo, era uma área pública, foi incorporado ao patrimônio do antigo BEG, depois vendido ao Lume, reincorporado ao já então Banerj e virou um anexo da praça que, há 40 anos, passou a fazer parte da rotina carioca no Centro do Rio. Mas a área do buraco ainda tem dono e foi vendida em leilão por uma subsidiária do Bradesco – que comprou o Banerj – em meados de 2019.  Logo depois, em setembro, o prefeito Marcelo Crivella fez sua primeira investida para permitir a construção de prédio comercial no Buraco do Lume e enviou à Câmara Municipal o Projeto de Lei Complementar 128/2019 exatamente para revogar o decreto de 1986, que limitava a edificação a bens culturais. O projeto não prosperou, mas a cobiça pelo terreno não retrocedeu – tanto que o decreto de 1986 foi derrubado agora com a aprovação de uma discreta emenda do Executivo ao seu próprio projeto de mudanças na legislação urbana.

O prefeito Crivella já disse que vai sancionar o PLC 174 – apelidado de Lei do Puxadinho por promover novos parâmetros urbanísticos de forma indiscriminada, com o aumento de gabarito e a alteração nas regras de afastamento e permissão de construção de novos tipos de edificações acima da cota 100 – e também a emenda para permitir a construção de um prédio no Buraco do Lume. Sancionado, o projeto deve prejudicar muitas partes do Rio, mas essa tentativa de tomar dos cariocas essa área pública não vai prosperar. Prevejo batalha judicial por conta da bagunça história em torno do antigo buraco. A Esplanada do Castelo – como todo o Centro – precisa de atenção e cuidado para ganhar vida permanente. Não precisa de outro prédio de 20 andares. A Prefeitura do Rio está em um buraco financeiro, mas esse avanço sobre o Buraco do Lume não vai ajudar em nada.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *