Não é um elefante

Estes são de verdade, vivem no sul da Índia, mas quando se trata de política nacional, é bom olhar várias vezes para ter certeza

Eduardo Paes usa critérios diferentes para invasores da Zona Sul e da Zona Oeste

Por Agostinho Vieira | ODS 11 • Publicada em 9 de outubro de 2015 - 20:27 • Atualizada em 4 de novembro de 2015 - 16:49

Estes são de verdade, vivem no sul da Índia, mas quando se trata de política nacional, é bom olhar várias vezes para ter certeza
Estes são elefantes de verdade, vivem no sul da Índia, mas quando se trata de política nacional, é bom olhar várias vezes para ter certeza
Estes são elefantes de verdade, vivem no sul da Índia, mas quando se trata de política nacional, é bom olhar várias vezes para ter certeza

“Is this an elephant? Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava. Não tinha nenhuma tromba visível…”

Este pequeno trecho da crônica “Aula de Inglês”, de Rubem Braga, faz parte da imperdível exposição sobre o centenário do escritor que estará em cartaz, até o dia 3 de agosto, no Galpão das Artes, no Jardim Botânico. O texto me veio à cabeça depois de ler as declarações do prefeito Eduardo Paes sobre a novela que envolve a invasão de terrenos do Jardim Botânico, ocupados irregularmente por 523 famílias.

O nosso alcaide foi veemente, duro, e acusou de demofobia todos aqueles que defendem a devolução dos terrenos aos seus legítimos donos. Nessa lista, entre outros, estão a presidente Dilma Rousseff, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, e dezenas de juízes federais que já decidiram que as ocupações são ilegais. Eduardo Paes foi ainda mais longe e disse que quem não quiser conviver com pessoas mais humildes na frente tem que se mudar para a Suíça.

O que teria acontecido? Será que o prefeito enlouqueceu e agora passará a apoiar qualquer tipo de invasão? E as decisões da Justiça? E o respeito aos contratos? E a responsabilidade do cargo? Como bem nos ensina Rubem Braga, não vamos nos deixar levar pelo primeiro impulso. Talvez não seja nada disso. Basta uma pesquisa rápida para saber que quando o tema é demofobia, o chefe do executivo municipal é bastante seletivo.

Em março, a Prefeitura começou a remoção e demolição de 280 das 583 casas e oficinas que formam a comunidade conhecida como Vila Autódromo, em Jacarepaguá. A área fica ao lado do terreno onde será construído o futuro Parque Olímpico. Ora, será que os pobres de Jacarepaguá são diferentes dos pobres do Jardim Botânico? Por que uns merecem ser removidos e os outros não?

Melhor examinar com cuidado. Afinal, como explica o cronista, se tirarmos a tromba de um elefante, nem por isso ele deixa de ser um elefante. Existem algumas diferenças entre os invasores do Jardim Botânico e os invasores da Vila Autódromo. Pra começar, os da Zona Sul não são todos pobres. Tem muita gente de classe média e alguns até um pouco mais abastados. Os da Zona Oeste têm título de posse, dado pelo ex-governador Leonel Brizola. Os da Zona Sul, não.

Além disso, a área da Vila Autódromo será transformada num sustentável estacionamento. Já os 30 hectares ocupados indevidamente no Jardim Botânico seriam usados para meros projetos de preservação e pesquisa científica.  Mas a principal diferença mesmo é que, em Jacarepaguá, a Prefeitura se empenhou em buscar alternativas de moradia, pagar indenizações e negociar com os moradores. Já no Jardim Botânico, a opção foi pelo proselitismo político.

Não é preciso ser um gênio da administração pública para saber que a questão fundiária é um dos temas mais delicados para uma cidade como o Rio. Afinal de contas, estamos falando das casas das pessoas, das suas famílias, dos seus bens mais preciosos, de erros históricos que precisam ser resolvidos. Temos construções ilegais de classe baixa, média e alta. Precisamos de uma política habitacional clara e transparente.

Não dá para continuar convivendo com gente que mora em área de risco, sob o argumento fácil de que “são pobres, coitados, não têm para onde ir”. Sem contar que o aquecimento global vai mudar muito esse conceito de risco. É papel dos governos oferecer soluções e evitar que novas invasões aconteçam. Até para que não se crie uma indústria dos desabrigados. Comunidades carentes onde ambulâncias e carros de bombeiros não podem chegar também não são mais aceitáveis.

O desafio é enorme e o trabalho não tem nada de trivial. É preciso organização, diálogo, perseverança, vontade política e muita responsabilidade. Como tiveram os suíços, citados por Paes, que rejeitaram há pouco um salário mínimo de R$ 10 mil só porque seria ruim para o país como um todo. Não é com bravatas que se resolvem problemas sérios como este. Pensando bem, a frase do prefeito não era mesmo um elefante, um livro, um lenço ou um cinzeiro. Era só demagogia.

*Artigo publicado originalmente no Jornal O GLOBO, em maio de 2014

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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