Flanando pelo Rio

Um homem sentado num monumento observa as pessoas passeando em torno do Museu do Amanhã. Foto de Peter Bauza/DPA

Boulevard olímpico retomou hábito carioca que foi tema de muitos escritores

Por Andre Luis Mansur | ODS 11 • Publicada em 17 de setembro de 2016 - 05:17 • Atualizada em 17 de setembro de 2016 - 10:29

Um homem sentado num monumento observa as pessoas passeando em torno do Museu do Amanhã. Foto de Peter Bauza/DPA
Um homem sentado num monumento observa as pessoas passeando em torno do Museu do Amanhã. Foto de Peter Bauza/DPA
Um homem sentado num monumento observa as pessoas passeando em torno do Museu do Amanhã.

O Boulevard Olímpico, entre a Praça XV e os armazéns do Porto, foi uma das áreas mais visitadas da cidade do Rio de Janeiro durante os Jogos realizados em agosto. E o que mais se viu naquele espaço totalmente revitalizado foi gente passeando, exercitando o doce ofício de flanar, o “andar despreocupadamente”, palavra de origem francesa que o escritor João do Rio tanto usou em seus livros do início do século XX.

…passou o Saco do Alferes, passou a Gamboa, parou diante do Cemitério dos Ingleses, com os seus velhos sepulcros trepados pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu suas esquinas, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do tempo do rei…

Flanar, segundo a jornalista e escritora Luciana Hidalgo, “tornou-se um verbo e uma prática muito comuns no Brasil do século XIX, certamente por influência francesa. No século XIX, o poeta Charles Baudelaire referia-se ao flâneur como um passeador especial, um espírito independente, que estava no centro do mundo, mas era capaz de olhar esse mesmo mundo com uma distância, com crítica”.

O livro "O Passeador", de Luciana Hidalgo.
O livro “O Passeador”, de Luciana Hidalgo.

Outro flâneur da mesma época de João do Rio foi Lima Barreto, autor homenageado por Luciana no romance “O passeador” (Rocco), cujo protagonista, Afonso (primeiro nome de Lima Barreto), começa o livro passeando pelas obras da Avenida Central (atual Rio Branco) e criticando a política do Bota-abaixo do prefeito Pereira Passos. Para a autora, ele é “um andarilho solitário, capaz de parar diante de um sobrado em ruínas e ficar ali, horas a fio, inventando histórias de seus ex-moradores, partido entre dados reais e ficcionais. Mas nem sempre ele está totalmente sozinho, pois volta e meia é observado, até mesmo cortejado, por uma silhueta, a de Sofia, uma outra passeadora, que o segue entre a cidade concreta e a imaginária, em suas andanças e voos entre ficção e História”.

Machado de Assis foi outro grande andarilho do centro da cidade. Nascido no Morro do Livramento, bem perto de onde seria o Boulevard Olímpico, Machado gastou muita sola de sapato pelas ruas da cidade durante toda a sua vida, inspirando-se em fatos, lugares e pessoas que via nos seus passeios. No romance “Quincas Borba”, o personagem Rubião também passeia por aquela região, “passou o Saco do Alferes, passou a Gamboa, parou diante do Cemitério dos Ingleses, com os seus velhos sepulcros trepados pelo morro, e afinal chegou à Saúde. Viu suas esquinas, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, becos, muita casa antiga, algumas do tempo do rei, comidas, gretadas, estripadas, o caio escondido e a vida lá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia”.

Repara, disse-me Gonzaga de Sá, como esta gente se move satisfeita. Para que iremos perturbá-la com nossas angústias e nossos desesperos?

Machado não só passeou muito a pé, mas andou também bastante de bonde, um símbolo da paisagem carioca com presença marcante em sua vasta obra. E aí chegamos a outro elemento atual na revitalização do centro do Rio, o VLT, Veículo Leve sobre Trilhos, que utiliza o mesmo percurso do bonde usado por Machado e outros escritores, como Manuel Bandeira algumas décadas mais tarde, o poeta que morou na Lapa e muito se inspirou também no cotidiano do centro do Rio.

Machado andou muito de bonde pelo Centro do Rio
Machado andou muito de bonde pelo Centro do Rio

Carlos Drummond de Andrade, contemporâneo, foi filmado (“No caminho de Drummond”) passeando, não só em Copacabana, onde morava, como no centro do Rio, onde trabalhava. Drummond era mineiro de nascença, mas carioca por amor a esta cidade, como muitos dos que passeiam hoje pelo Boulevard Olímpico. O poeta, no entanto, não viveu numa época muito tranquila para passear, pois os automóveis já disputavam lugar com os pedestres e faziam parte da poesia do escritor: “Stop! Parou a vida. Ou foi o automóvel?” Hoje, não só o automóvel, mas também a violência urbana atrapalha o flanar das pessoas, daí a importância de uma área tão grande revitalizada no centro da cidade e proibida para os automóveis.

É bem possível que um bom observador, nos dias de hoje, ao se sentar em alguns dos muitos bancos do litoral revitalizado do centro do Rio, sinta-se como um dos personagens de “Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá”, do já citado Lima Barreto e, segundo Luciana Hidalgo, “um romance inteiro sobre passeadores”. Ao observar o cotidiano de uma rua do centro, matéria prima para qualquer cronista, o narrador Augusto Machado comenta uma fala do protagonista: “Repara, disse-me Gonzaga de Sá, como esta gente se move satisfeita. Para que iremos perturbá-la com nossas angústias e nossos desesperos? Não seria mal?”

https://www.youtube.com/watch?v=3bkhGNSfL8I

Andre Luis Mansur

Jornalista e escritor, tendo passado por veículos como Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil e O Globo, onde publicou mais de cem críticas literárias. Tem nove livros publicados, a maioria sobre a história da cidade do Rio de Janeiro, como “O Velho Oeste Carioca”, “Fragmentos do Rio Antigo” e “Marechal Hermes – a história de um bairro”. Vive na zona oeste do Rio de Janeiro, no bairro de Campo Grande.

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