Charlie, ano 2: a rotina do medo

Uma mulher observa a polêmica capa da Charlie Hebdo que lembra o atentado ocorrido no ano anterior

No país da igualdade e da fraternidade, viver sob alerta máximo de segurança virou o novo normal

Por Helena Celestino | ArtigoODS 1ODS 11 • Publicada em 7 de janeiro de 2016 - 08:47 • Atualizada em 7 de janeiro de 2016 - 10:57

Uma mulher observa a polêmica capa da Charlie Hebdo que lembra o atentado ocorrido no ano anterior
Uma mulher observa a polêmica capa da Charlie Hebdo que lembra o atentado ocorrido no ano anterior
Uma mulher observa a polêmica capa da Charlie Hebdo que lembra o atentado ocorrido no ano anterior

Só a placa em homenagem aos cartunistas mortos, inaugurada esta semana pelo presidente François Hollande, lembra a velha redação do Charlie Hebdo, onde um ano atrás a reunião de pauta foi interrompida e  alguns dos mais brilhantes desenhistas franceses massacrados por terroristas da Al-Qaeda.  É bem longe dali, num edifício-bunker onde guardas armados são onipresentes e a segurança reforçada por dispositivos de 1,5 milhão de euros que o “novo Charlie” é pensado, desenhado, escrito e produzido toda semana. Sob proteção permanente, os jornalistas sobreviventes resistem com humor cáustico às ameaças de morte, lançadas permanentemente por extremistas muçulmanos, dispostos a exterminar a irreverência através das armas.

Fomos transformados em cidadãos de segunda classe, sou considerado menos francês que os outros

Sem nostalgia, o Charlie abandonou o endereço antigo, perto da Place de la Bastille, da Republique e do Bataclan, cenários dos atentados que marcaram o início e o fim de 2015 na França.  Fora os arquivos, tudo foi pro lixo em outubro quando os sobreviventes entraram na nova redação no sul de Paris, num endereço mantido sob sigilo. “Não queríamos nada que nos fizesse lembrar aquele maldito dia 7 de janeiro”, disse o diretor financeiro ao Le Monde.

Nem eles nem seus vizinhos. As marcas de bala e sangue desapareceram sob camadas novas de tinta e gesso, os policiais que protegiam o edifício sumiram em junho. Os moradores do prédio ainda são os mesmos de “antes” e , sem notar,  evitam as escadas por onde saíram os corpos dos mortos, No bairro, poucos sabiam que o Charlie habitava o 10, Rue Nicolas Appert; o jornal escondia-se sob o nome “Les éditions des échapées”, algo como ”edições dos fugitivos” na tradução para o português. Era o quinto endereço da redação, sempre fugindo das ameaças e da falta de dinheiro  para pagar o aluguel.

Foi um ano duro, a tragédia pairou sobre cada uma das edições do jornal. Teve brigas internas por causa de dinheiro e algumas deserções importantes no aquário dos cartunistas.  O desenhista Luz, vivo porque chegou atrasado na reunião há um ano, abandonou o barco em setembro. “Cada fechamento virou uma tortura, passo noites de insônia pensando no que Chab, Cabu Honoré, Wolinski, Tignoré  teriam feito”, disse na despedida.

Muitos dos antigos não conseguem trabalhar na redação bunker, onde é preciso crachá para atravessar de uma sala para outra. Os resistentes mantiveram o espírito combativo e iconoclasta do jornal, mas acabou rápido a união nacional em torno do humor corrosivo do Charlie. Se nos dias seguintes ao massacre foi praticamente unânime o reconhecimento ao direito dos humoristas de fazerem graça mesmo com dogmas religiosos –  como no caso das charges de Maomé, motivo da decretação da fatwa contra o Charlie – agora explodem críticas a cada nova provocação do jornal satírico.

Não foi nada bem recebida pelo Vaticano a capa da edição lembrando o  atentado, mandada às bancas ontem com uma tiragem de um milhão de exemplares. A charge mostrava um Deus barbudo e ensanguentado, com uma kalashinikov nas costas, acompanhada de um texto: um ano depois, os assassinos   estão sempre aí”. O jornal Observatório Romano considerou o desenho uma ofensa a todas as religiões.  “Usar Deus para justificar o ódio é uma blasfêmia genuína , como já disse inúmeras vezes o papa Francisco”, bateu.

Não foi a única capa a criar polêmica, claro. Uma graça com a derrubada do avião russo no Egito provocou a ira do presidente Vladimir Putin e foi muito mal recebida a caricatura do menino Aylan morto na praia ao tentar chegar à Europa.   “Não me incomoda ficar sozinho contra todos – disse Riss, o autor da charge do Deus barbudo e um dos feridos no ataque, ao jornal Libération.

Alguns, no entanto, confessam que agora refletem mais sobre limites, mesmo se pretendem manter a liberdade de pensar e fazer rir de todos e tudo. Vira e mexe – contam – um pede a opinião do outro sobre caricaturas mais provocativas, mas no geral a raiva da intolerância – de direita, de esquerda, dos religiosos de todos os credos –  ganha do medo.

“Temos de ser agitadores de ideias porque, na França, estamos morrendo pelo que  se deixa de dizer”, defende um dos humoristas do grupo “Ponto e Vírgula”.

Viver sob alerta máximo de segurança virou o novo normal em 2015. Desde que o presidente François Hollande decretou o estado de emergência depois dos trágicos atentados de 13 de novembro – 130 mortos – o governo ganhou poderes excepcionais para fazer buscas em domicílios e decretar prisão domiciliar sem necessidade de mandato judicial.  Mais de 2.900 batidas policiais foram feitas em um mês e só na primeira semana pós-atentados 164 ficaram em prisão domiciliar, a maioria atingindo pessoas com nenhuma relação com o terrorismo. Na dúvida, prende-se os suspeitos habituais, o que nos tempos modernos significa muçulmanos.

O presidente francês argumenta que está em guerra contra o terrorismo, exatamente como fez George W Bush depois da derrubada das torres gêmeas em Nova York. Hollande pretende mudar a Constituição para manter estes superpoderes depois do fim da emergência em 26 de fevereiro. Os debates na Assembleia começam no início do próximo mês e uma das medidas mais radicais em discussão é tirar a nacionalidade francesa dos filhos de imigrantes nascidos na França se condenados por terrorismo. São 3,3 milhões de binacionais, dos quais 3 milhões são filhos de imigrantes vindos de países de maioria muçulmana, especialmente das antigas colônias francesas.

É absurdo, claro. Se aprovada, a mudança acaba com o princípio de que todos são iguais perante a lei.  Exatamente o argumento usado pelo próprio Francois Hollande para torpedear proposta idêntica feita pelo ex-presidente Nicholas Sarkozy quando estava no Elysée.

“Fomos transformados em cidadãos de segunda classe, sou considerado menos francês que os outros”, reclama Cyrill Hamad, 28 anos, engenheiro franco-tunisino que sempre viveu em Paris. O mesmo sentimento de traição tem a maioria dos muçulmanos franceses com a ligação direta estabelecida nas entrelinhas da lei entre muçulmano e terrorismo. Pelas redes sociais, postaram um grito de protesto: somos pessoas normais, que se irritam quando saem de casa sem tomar café da manhã, gostam de cachorros e não acreditam mais nos políticos.

Ainda não foram ouvidos. Pesquisa feita pelo instituto Elabe estima que nove em cada dez franceses são favoráveis à retirada da nacionalidade dos terroristas binacionais, ao aumento de poderes da polícia, à concessão de superpoderes ao governo em nome da segurança.

Os americanos já viram esse filme e, em editorial, o New York Times alertou: o movimento a favor da redução das liberdades civis e do fim da supervisão judicial vai só magnificar o potencial para abuso de poderes sem garantir a segurança pública.

Helena Celestino

Jornalismo é um vício assumido, é difícil me imaginar longe da notícia. Acostumei a viver com o dedo na tomada: aprendi isto trabalhando, viajando pelo mundo e sendo por muitos anos editora executiva do Globo.

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