Memórias de uma cidade soterrada pela lama

Não havia obstáculos para a lama, que trouxe desde maquinários pesados até troncos de árvores inteiras (Foto: Andre Mantelli).

Jornalista conta os bastidores da cobertura em meio ao cenário desolador

Por Camila Nobrega | ODS 11 • Publicada em 25 de fevereiro de 2019 - 08:00 • Atualizada em 27 de janeiro de 2020 - 11:19

Não havia obstáculos para a lama, que trouxe desde maquinários pesados até troncos de árvores inteiras (Foto: Andre Mantelli).
Não havia obstáculos para a lama, que trouxe desde maquinários pesados até troncos de árvores inteiras (Foto: Andre Mantelli).
Não havia obstáculos para a lama, que trouxe desde maquinários pesados até troncos de árvores inteiras (Foto: Andre Mantelli).

Na barreira instalada pela polícia na principal rua do bairro Córrego do Feijão, onde há o principal acesso para a área onde ficava o refeitório e a sede da Vale, eu esperava em frente ao ponto interditado. Além de uma faixa, um policial impedia a passagem das pessoas. Ao fim da ladeira, era possível ver apenas o cenário marrom, tomado pelos rejeitos do rompimento da barragem, Enquanto isso, eu conversava com algumas pessoas que passavam. Àquela altura, já havia entendido que, frente a uma das maiores tragédias ambientais e sociais da história do país, nenhuma conversa seria em vão.  A cada manhã de trabalho, pareciam ter passado dias, levando em conta a quantidade de histórias, memórias, a mistura de cheiros, de terra, lama, o ar pesado que dificultava a respiração em alguns momentos, a dor de cabeça que começou a vir. Somavam-se a isso os quilômetros percorridos de estrada diariamente, as notícias que chegavam o tempo todo, helicópteros indo e vindo, os velórios que se sucediam, a imensidão e o contraste que a lama trazia. A sensação de que Brumadinho e seus moradores tiveram o rumo completamente modificado no congelamento do tempo pela lama. As paisagens e as pessoas estavam completamente reviradas.

O medo do esquecimento começava a sobrepor o cansaço da fala

Se por um lado pareciam cansados de dar entrevistas, os moradores queriam ser ouvidos. Como cheguei ao local dez dias depois do desastre, a maior parte das equipes de jornalistas já haviam se retirado, as câmeras já não eram tantas, os holofotes diminuíram. O medo do esquecimento começava a sobrepor o cansaço da fala, e a conversa se transportava não mais apenas para os detalhes do desastre, mas também para lembranças, expectativas de justiça, social e também ambiental. Havia ali muito mais do que uma tragédia para cobrir.

Encostado numa grade, também próximo à barreira instalada pela polícia no Córrego do Feijão, Lucas Teixeira começou a me contar que, entre outras coisas, produzia queijo e só restavam os últimos que poderia vender. Perguntei onde ele morava, ele só acenou com a cabeça. Entendi que era dentro da área interditada. Depois de minutos de conversa, ele me disse, “tenho que pegar esses últimos queijos, se quiser ver, pode vir comigo”. Passamos a barreira, o policial dessa vez me deixou passar. Mas logo outro policial veio atrás e acompanhou nossos passos a partir dali.

Ordens superiores não deixavam documentar o local, o que na prática era uma intimidação

Lucas e a esposa trabalhavam de caseiros no sítio. Ela estava em casa com o filho do casal, de pouco mais de um ano, quando a lama invadiu o sítio. Ela saiu correndo, tropeçou na lama com a criança no colo e caiu, mas conseguiu levantar e fugir. Nenhum dos dois sofreu muitos ferimentos. Quando entramos, olhei para o lado, exatamente na direção da descida da ladeira interditada pela polícia. O jardim era um amontoado de árvores, pedaços de construção de uma das casas pequenas, que foi destruída, árvores retorcidas. Era pôr do sol. Por entre esse amálgama de elementos, era possível ver só lama, que havia destruído uma das três casas do terreno e deixado marcas nas outras duas que continuavam de pé. Todas as casas que estavam antes da dele foram destruídas.

Nesse cenário, Lucas me explicou que ali no sítio havia vacas, galinhas e outros bichos, além de uma grande horta. A vista da casa era voltada para um córrego, que dava nome ao lugar. Enquanto contava, ele embrulhava os dois últimos queijos artesanais que sobraram da última produção. Nenhum dos animais sobreviveu ao dia do rompimento da barragem.

Dentro da casa, fui impedida de fotografar e filmar, mesmo tendo argumentado, frente ao consentimento do morador. O policial que nos acompanhava não deu explicações, se não a de que ordens superiores não deixavam documentar o local, o que na prática era uma intimidação. Passados os primeiros dias de grande presença da mídia, houve a chegada de um clima também de vigilância constante sobre o local.

¨Brumadinho está de luto¨

No momento em que cheguei no centro da cidade de Brumadinho, em busca de uma pessoa com quem havia marcado uma entrevista, a cidade estava toda mobilizada para três velórios que aconteceriam simultaneamente. Na frente do cemitério, uma Brasília estacionada tinha um adesivo enorme colado no vidro que dizia “Brumadinho está de luto: culpa da Vale”. Só depois fui entender que a despedida não era apenas das pessoas, mas da existência de um lugar e de uma comunidade inteira.

Desde os primeiros momentos que passei na região, percebi que lidaria com uma cidade que precisaria ser imaginada, quase em um acordo mútuo com cada entrevistada ou entrevistado. Uma cidade que não existe mais. Principalmente nas duas localidades mais atingidas pela lama, o Córrego do Feijão, onde ficava a mina, e o Parque da Cachoeira, ambos bairros de Brumadinho, moradores e moradoras tentavam descrever detalhes do que havia antes no local. Córregos, mata, pomares, hortas, casas de vizinhos que foram soterradas, áreas de mata engolidas, e as grandes estruturas da mina, do refeitório, da sede da Vale, onde a maior parte das pessoas desaparecidas trabalhavam. Uma senhora me narrou a chegada da mineração no local, nos anos 1970, e todo o processo até a chegada da Vale, em 2001. Todas as pessoas com quem conversei perderam pessoas queridas, entre parentes, amigos, vizinhos. As cenas de choro, abraços e rostos abatidos eram perturbadoras, as entrevistas precisavam de pausas e, nos locais onde havia buscas, as conversas eram constantemente interrompidas por barulho de helicópteros sobrevoando.

Seguindo o fluxo do rio Paraopeba, as memórias também ultrapassavam fronteiras de municípios, uma vez que a água completamente marrom turva não dava nem sinal de vida. Na aldeia Pataxó Nao Xohã, em São Joaquim de Bicas, a 22 quilômetros, o rio acelerado descia apenas com rejeitos, escuro, sem peixes ou qualquer outro tipo de vida marinha.

Uma narrativa-imagem me acompanhava. De um lugar e contexto completamente diferentes onde nunca estive presencialmente. Era para onde eu havia sido transportada recentemente pela escritora peruana Marisol de la Cadena, como parte de uma busca não só como jornalista, mas também como pesquisadora de conflitos socioambientais. De la Cadena escreve sobre Ausangate, no Peru, e os conflitos entre projetos de mineração e comunidades indígenas. Mas, mais do que isso, ela fala sobre outras possibilidades de sentido nas montanhas que não a exploração mineral. E aborda também os conflitos socioambientais a partir de um olhar que não segue uma falsa antítese entre “humanidade” e “natureza”. Ali, ela me fazia pensar que não havia como separar pessoas, natureza ou o que se convencionou chamar de “meio ambiente”. A dinâmica local existia porque existiam aquelas comunidades e aqueles elementos, sejam os mananciais que foram completamente prejudicados, o rio saudável, os peixes, os cotidianos possíveis. Desde o dia do rompimento da barragem, centenas de pessoas tiveram a vida atravessada de tal maneira que não era mais possível seguir suas formas de existência.

Não só a rua, mas várias casas foram arrastadas pela força da lama tóxica que veio da baragem do Córrego do Feijão (Foto: Andre Mantelli)
Não só a rua, mas várias casas foram arrastadas pela força da lama tóxica que veio da barragem do Córrego do Feijão (Foto: Andre Mantelli)

Saindo do centro de Brumadinho, estive no Parque da Cachoeira, onde vi pela primeira vez a cena de um rio de lama congelado, com vários objetos, eletrodomésticos, pedaços de construção e outras coisas agarrados nele e presos no tempo. Depois dali, seguindo para Belo Horizonte por uma estrada de terra, é possível ver a atividade de mineração a pleno vapor. Estrada vazia, onde passavam apenas caminhões e motos de funcionários da Vale. A apenas poucos quilômetros de onde a lama tinha se alastrado, os barulhos de máquinas seguiam e a produção do minério de ferro continuava. Aquele pó preto lançado no ar em queda livre por imensos maquinários. Na área de mineração, montanhas marrons com trechos pretos e completa ausência de verde nos topos de morros. Tudo isso fazia enorme contraste todo o percurso na região, passando pela enorme área verde do Parque Estadual da Serra do Rola Moça.

Conversei nesse período com alguns amigos repórteres, fotógrafos, documentaristas. Todos tinham respostas exaustas, incrédulas, todos me disseram para me preparar: “é uma das coberturas mais difíceis que já fiz”, me disse uma. “Se prepara emocionalmente, embora eu não saiba de te dizer como”, me disse outro.

Revivo nesse texto a sensação que tomou conta nos dias em Brumadinho, enfrentando a dificuldade de conseguir retratar a dimensão do que não se conseguiu ainda classificar, seja em termos de impactos ambientais e sociais, de atingidos, de memórias perdidas, de apagamentos. Foram quatro dias em Brumadinho, que parecem pelo menos duas semanas em termos de vivências, e anos, levando em conta o exercício de imaginação de cada pessoa entrevistada, buscando narrar uma cidade que um dia existiu.

 

 

Camila Nobrega

É jornalista freelancer e doutoranda em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim

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