A vida com tornozeleira eletrônica

Documentário acompanha o cotidiano de um jovem ex-presidiário, cumprindo pena em regime semiaberto, para discutir o sistema punitivo no país

Por Caio de Freitas | ODS 1 • Publicada em 16 de abril de 2018 - 13:54 • Atualizada em 20 de abril de 2018 - 14:20

Ivan, em casa, com a tornozeleira eletrônica: liberdade vigiada. Foto: Reprodução
Ivan, em casa, com a tornozeleira eletrônica: aflição com  a vigilância 24h por dia. Foto: Reprodução

Há muito tempo me incomodo com aquele dito: “Direitos Humanos para humanos direitos”. Lembro de ficar muito inquieto com isso, de me pegar pensando, instigado: “E os Direitos Humanos para o bandido?”. Essa provocação  dá o tom de Corpo Delito,  filme de estreia do jornalista e documentarista Pedro Rocha, que tem circulado o país desde o fim de 2017.

A obra mistura imagens reais com encenação de situações vividas pelo protagonista, Ivan Silva, que vive na periferia de Fortaleza. Cumprindo pena em regime semiaberto, vigiado 24h por dia por meio de tornozeleira eletrônica, Ivan compartilhou sua rotina e intimidade para a realização do filme. No fim, Corpo Delito pergunta ao espectador: quais são os frutos da nossa política carcerária?

Ivan (de boné) e um amigo: na periferia de Fortaleza. Foto: Reprodução
Cena do documentário: filmagem na periferia de Fortaleza. Foto: Reprodução

O filme foi precedido por anos de estudos sobre o uso de imagens de acusados e de criminosos para estigmatizar os mais pobres. Rocha conta que pesquisou desde teóricos da criminologia italiana que sustentavam, no século XIX, teses criminais racistas, como os primeiros usos da fotografia criminal. Sua pesquisa se entrelaçou com programas policiais populares que hoje dominam a TV aberta, em diferentes faixas de horário. “Nos primórdios da fotografia, os acusados não ficavam estáticos: faziam caretas, se mexiam, burlavam e distorciam seus rostos, para que não fossem capturados pela imagem fotográfica. Associei isso à imagem de acusados escondendo seus rostos com as camisetas nesses programas populares, enquanto os repórteres ficam instigando, provocando com a câmera e o microfone”, explica.

Acredito na potência do cinema para a reinvenção de realidades duras, violentas. Depois de todo o processo, de ter sido acolhido pelo Ivan e por sua família, entendo cada vez mais um certo desejo de ostentação, o direito de ter e desejar muito mais do que a sociedade oferece de forma tão desigual

Mas o projeto tomou outras direções depois da inquietação inicial: foi contemplado pelo edital Histórias que Ficam e ganhou o reforço do professor de cinema da Universidade Federal do Ceará (UFC) e roteirista Diego Hoefel. Assim, deixou de lado uma crítica de representação e imagens – “Algo sério e sisudo, acadêmico demais”, segundo Pedro – para aprofundar-se na vida de personagens afetados pela violência no eixo entre Fortaleza e Recife. “Houve um momento em que tínhamos quatro personagens possíveis. Isso englobava desde um policial até um indígena Tremembé que fazia um curso para voltar à sua comunidade. Ele queria trabalhar como segurança privado em um parque eólico. Eram história incríveis, todas”.

Ivan Silva foi o personagem escolhido por mostrar-se mais simpático à ideia de compartilhar parte de sua vida e rotina com a equipe. “Sem contar, claro, o fato de que ele já havia passado muitos anos na cadeia, o que nos ajudaria a escapar de uma ‘crítica social’ cômoda, fácil de ser feita. Haveria, no público, quem já estivesse predisposto a julgá-lo sem sequer conhecê-lo”, explica.

O diretor Pedro Cunha, entre neto e Ivan. Foto: Reprodução
O diretor Pedro Rocha, entre José Neto e Ivan.Foto: Reprodução

Dali em diante, ainda em 2015, foram meses de filmagens junto a Ivan e seu círculo mais próximo – pessoas como sua esposa, Gleiciane Gomes, sua filha, Glenda, e o amigo José Neto. Vemos Ivan, limitado a trajetos autorizados pela Justiça, oscilando entre o dever de manter-se “de casa para o trabalho, do trabalho para casa” e a vontade de libertar-se da vigilância. Para além, há os rearranjos familiares e momentos mais intimistas, como a ida das mulheres ao cemitério para visitar o túmulo de parentes vitimados pela violência.

Em diferentes instâncias da lei, o que se vê em Corpo Delito escancara uma realidade muito distante entre juízes, promotores e oficiais da Justiça daqueles julgados e penalizados; no entre-lugar desses pólos, o espectador. Há desde audiências oficiais envoltas em pequenas lições de moral até uma rotina de trabalho braçal. “Não é fácil  digerir esse modo de vida… por mais que o que tenha impregnado as imagens seja uma exposição, com certa empatia, das violências que Ivan sofreu. Sei que, no fim das contas, mostramos algo que a maioria não conhece – algo que também é fruto de um senso punitivista na sociedade -, e isso é muito importante, ainda mais no momento atual”, elabora o diretor.

Daí em diante, uma inquietação ganha força: como democratizar o direito ao sonho e ao desejo? Também estão presentes no longa as derivas pela cidade, a alegria partilhada em festas com amigos, a pelada de noite na praia: intimidades que extrapolam os limites da crítica puramente sociológica.

Em cena, vemos Ivan ora resignado com o poder da lei, ora inventivo, criando métodos para burlar a vigilância da tornozeleira em nome de uma volta pela cidade ou de um encontro com amigos. “Acredito na potência do cinema para a reinvenção de realidades duras, violentas. Depois de todo o processo, de ter sido acolhido pelo Ivan e por sua família, entendo cada vez mais um certo desejo de ostentação, o direito de ter e desejar muito mais do que a sociedade oferece de forma tão desigual”, reflete o diretor.

Em um dos momentos de filmagem, numa sequência que seguiria Ivan em uma ida à praia – um breve respiro dentro de sua rotina controlada -, o protagonista estava próximo de um ponto de jet skis para alugar. Ao vê-los, provocou a equipe, perguntando: “Vocês não querem me chamar pra dar uma voltinha, não?”.

Com o plano de filmagens apertado, Pedro conta que não foi possível improvisar essa sequência – com o pesar de ter perdido a chance de reinventar e subverter a ordem que estava dada a todos. “Ao lembrar desse episódio, fico um pouco triste, mas, ao mesmo tempo, me faz ter certeza de que essas empreitadas precisam ser mais ousadas… histórias com romance, com ação, com drama, sabe? Tem disso no filme, eu sei, porém muito mais ainda é necessário. E isso não é ignorar a vida real; o documentário pode ser apenas um outro jeito de fazer ficção também. Às vezes, é exatamente isso que ele precisa ser”.

Caio de Freitas

Jornalista e mestre em comunicação, Caio de Freitas Paes é especialista em jornalismo em quadrinhos, escritor, editor e roteirista. Entre suas áreas de interesse, destaque para questões ligadas aos direitos humanos, cultura, sociedade da informação e vigilância

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