Qual é a carne mais barata do mercado?

Operação policial no Complexo da Maré em Abril de 2015

Jovens negros são as principais vítimas de homicídios no país, diz Anistia Internacional

Por Liana Melo | ODS 1 • Publicada em 23 de fevereiro de 2016 - 18:50 • Atualizada em 26 de fevereiro de 2016 - 11:43

Operação policial no Complexo da Maré em Abril de 2015
Operação policial no Complexo da Maré em Abril de 2015
Operação policial no Complexo da Maré em Abril de 2015

Um menino de 13 anos foi assassinado durante uma operação policial em Manguinhos. No Complexo da Maré, a vítima foi um adolescente de 16 anos. Duas mortes violentas em duas favelas do Rio de Janeiro em um único mês: setembro de 2015. Dois meses depois, cinco jovens negros com idades entre 16 e 25 anos foram baleados em Costa Barros. Os policiais militares efetuaram mais de 100 disparos em direção ao carro onde eles estavam sentados. Todos morreram. As estatísticas confirmam que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. O protesto musicado por Elza Soares e escrito por Seu Jorge denuncia o que as pesquisas não param de confirmar: os jovens negros são as principais vítimas dos casos de homicídios no país.

A (in) segurança pública e o alto número de homicídios destes jovens continuam entre as maiores preocupações da Anistia Internacional descritos no seu mais recente relatório: “O Estado de Direitos Humanos no mundo 2015/2016″. Em um calhamaço de 236 páginas é analisada a situação de 160 países. O Brasil é um deles. Como o Ministério da Saúde ainda não compilou os dados de homicídios do ano passado, o relatório lançou mão de informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2014, quando cerca de 58 mil pessoas foram vítimas de homicídios – um aumento de 37% em relação ao ano anterior. A proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos é um dos retrocessos apontados pela entidade.

As políticas de segurança pública pautadas pela guerra às drogas e a indignação seletiva resultam em um alto número de mortes, principalmente de jovens negros moradores de favelas e periferias

A falta de transparência nas operações policiais “impossibilitou que se calculasse o número exato de pessoas mortas em consequência dessas operações”. O relatório cita também tentativas de criminalização das vítimas e alteração da cena do crime – como ocorreu no assassinato do menino Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, morto por policiais militares diante de sua casa no Complexo do Alemão. A remoção do corpo pelos PMs e a alteração da cena do crime onde o menino foi morto foram impedidas pelos familiares e vizinhos do menino. Após receberem ameaças de morte, a mãe de Eduardo e outros membros da família tiveram que deixar a cidade.

Das 220 investigações sobre homicídios cometidos por policiais abertas em 2011 na cidade do Rio de Janeiro, houve, até o ano passado, somente um caso em que um policial foi indiciado. E o Plano Nacional de Redução dos Homicídios, prometido pelo governo Federal, nunca saiu do papel, apesar dos casos de homicídios cometidos por policiais em serviço ou fora dele terem ganhado as manchetes dos principais jornais do país – e também no Exterior.

Índios, gays e tortura nas prisões

O relatório também denuncia tortura e maus-tratos de pessoas presas. A presidente Dilma Rousseff nomeou 11 especialistas para discutir o assunto, num grupo que chamou de Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Até agora, nenhum resultado foi divulgado sobre as denúncias envolvendo a situação degradante nos presídios, especialmente em Pedrinhas, no Maranhão, onde um preso foi morto, assado e, parcialmente, canibalizado por outros detentos.

A violência contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e interssexuais também foi alvo do relatório.

Indígenas da terra Kurusu Ambá, no Mato Grosso do Sul
Guaranis-Kaiowás da terra Kurusu Ambá

A violência também foi a palavra de ordem no campo. O caso do Guaranis Kaiowas, população indígena submetida a condições extremas de precariedade em relação a posse de suas terras no Mato Grosso do Sul, também foi denunciada. Uma emenda à Constituição que transfere a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo – onde a frente de pressão do agronegócio é bastante forte – foi aprovada por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados em outubro passado. No final de 2015, a emenda ainda aguardava o ok dos parlamentares. Caso venha a ser aprovada, diz o relatório, a medida terá um impacto bastante negativo no acesso à terra para os povos indígenas e novas demarcações de terras estão bastante comprometidas.

A ONU e os desalojados do mundo

Depois de exortar as nações a se unirem para “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra” e “reafirmar a crença nos direitos humanos fundamentais”, a Organização das Nações Unidas (ONU) chega aos 70 anos em um mundo assolado pela violação das leis internacionais humanitárias e de direitos humanos. É conflito na Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Paquistão e Iêmen. É abuso no continente africano, envolvendo Burundi, Camarões, República Centro-Africana, nordeste da Nigéria, Somália e Sudão do Sul. Sem falar nas violações de direitos no Brasil, Colômbia, Venezuela e México.

Não somente nossos direitos estão sendo ameaçados, como também as leis e o sistema que as protegem. Mais de 70 anos de trabalho duro e o progresso humano está em risco

Hoje, existem mais pessoas em busca de refúgio em todo o mundo do que em qualquer momento desde a Segunda Guerra Mundial. Muitos refugiados foram criminalizados em alguns países; enquanto em outros, tiveram o acesso ao pedido de asilo negado. Mais de 98 Estados realizaram torturas ou maus-tratos e 30 ou mais países obrigaram refugiados a retornarem a países onde estariam em perigo. Em pelo menos 18 países, os governos ou grupos armados cometeram crimes de guerra e outras violações das leis de guerra.

Gráfico sobre direitos humanos no mundo, com dados do relatório da Anistia Internacional
Os direitos humanos pelo mundo com dados da Anistia Internacional. Por Fernando Alvarus

Será o sistema de leis e instituições internacionais adequado para a urgente tarefa de proteger os direitos humanos? A pergunta feita no relatório da Anistia Internacional vem acompanhado da resposta: “quando as rachaduras começaram a surgir, percebemos que era o próprio sistema internacional de proteção dos direitos humanos que precisa ser protegido.”

O secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, aproveita o lançamento do mais recente relatório da entidade para fazer um apelo aos líderes mundiais: “que façam tudo que estiver ao alcance para evitar que essas crises saiam do controle”. Os governos, diz ele, devem parar de atacar os direitos e fortalecer as defesas que o mundo implementou para protegê-los. E concluiu: “os direitos humanos são uma necessidade, e não algo dispensável; e os riscos para humanidade nunca foram tão grandes”.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *