Coração valente

Aos 12 anos, Vanderlei é um rapazinho miúdo que frequenta a escola numa série atrasada para a sua idade

A amizade entre o menino que denunciou um estuprador e o delegado que ajudou a colocá-lo na cadeia

Por Marizilda Cruppe | ODS 1 • Publicada em 16 de junho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 16 de junho de 2016 - 18:13

Aos 12 anos, Vanderlei é um rapazinho miúdo que frequenta a escola numa série atrasada para a sua idade
Aos 12 anos, Vanderlei é um rapazinho miúdo que frequenta a escola numa série atrasada para a sua idade
Aos 12 anos, Vanderlei é um rapazinho miúdo que frequenta a escola numa série atrasada para a sua idade

O menino magro e frágil atravessou de bicicleta, e num fôlego só, os mil metros de ruas de terra do bairro do Moconha até a delegacia. Entrou apressado, lágrimas pelo rosto e pânico injetado nos olhos. Falou com os pulmões plenos de coragem: “Por favor, por favor! Vocês têm que fazer alguma coisa! Ele tá lá batendo na minha mãe. Ele me bateu. Ele tá perto das minhas irmãs”.

Rodrigo e Vanderlei têm uma relação de respeito e amizade. O garoto viu no delegado o “gigante” que poderia ajudá-lo. E o delegado encontrou em Vanderlei a motivação que precisa para enfrentar a dura rotina do município com menor IDH do Brasil cujo recorde de ocorrências policiais são de crimes de estupro.

Rodrigo Augusto Costa de Amorim, 30 anos, pernambucano de Recife, delegado titular do município de Melgaço, no Pará, há dois anos, se arrepia e embarga a voz quando relembra seu primeiro encontro com Vanderlei: “Foi tanta coragem deste menino que nem que eu viva cem anos vou esquecer”.

O delegado partiu com a missão de afastar o padrasto de Vanderlei da mãe e dos outros seis irmãos e irmãs. Sapucaia, o padrasto, estava enfurecido com a repercussão do caso de abuso sexual contra uma das meninas. O pedido de prisão preventiva, feito pelo delegado, foi negado pelo juiz. Só depois da denúncia de Vanderlei é que o Dr. Rodrigo conseguiu sua prisão. Sapucaia ainda não foi julgado.

“Ele é um gigante”, conta Vanderlei agarrado na cintura do delegado que retribui o carinho com elogios ao ato de bravura da criança.

Aos 12 anos, Vanderlei é um rapazinho miúdo que frequenta a escola numa série atrasada para a sua idade. Tem uma sabedoria que vem do coração, da comunhão com a natureza e com as pessoas. Numa noite estrelada, na escura rua onde Vanderlei mora, um alguém vindo da cidade e que há dias não levantava o queixo para admirar o céu, deu na pinta que não sabia identificar em que fase a lua estava. Vanderlei, com simplicidade e segurança, disse que era lua minguante. Os sapos coachavam e coachavam e coachavam e o menino explicou: “É um sapo preto com pintas cinzas. Ele mora numa toca. Se a senhora for lá agora vai ver que estão todos na porta da toca, que é a casa deles”.  E vieram mais ensinamentos sobre as palmeiras de miriti e a magia de se transformarem em brinquedos. Sobre o homem encantado, que é metade cobra, e mora no final da rua. Ele não foi lá ver porque sabe que é verdade e, “só de falar já se arrepia”.

Contou que sabe roçar e plantar. “Você trabalhava para os seus tios? Não era trabalho não, eu que gostava de fazer esse favor para eles porque meus tios precisavam de ajuda”. Vanderlei é mais que um menino simpático. É mais que um menino inteligente. É mais que um menino corajoso. Ele é diferente. É bondoso, generoso, grato. A dignidade exala do seu corpo magro. Vanderlei é um ser humano de bem. Até aquela hora da noite em que ele encantava as crianças e os adultos com a sua voz mansa e as suas histórias (e lições) de vida, o menino e os irmãos tinham comido apenas um pouco de açaí que a mãe havia colhido das palmeiras ao redor de casa.

Maria José é uma mulher sofrida, magrinha como o filho. Hoje, por incrível pareça, é a única visita de Sapucaia na cadeia. A família do homem pede que ela o visite e, em troca, dá alguma ajuda com a alimentação das crianças. Vanderlei diz que a mãe não quer ir, mas precisa.

Na sexta-feira passada Vanderlei foi visitar Rodrigo. Ele comprou roupas para o menino e alguns produtos de higiene pessoal. O delegado mesmo cortou as unhas do garoto e o colocou no banho para que vestisse as roupas novas, bem limpinho. Eram 17 h e Vanderlei não tinha comido nada ainda. Nem a mãe. Nem os irmãos. O delegado  ofereceu-lhe o almoço que àquela altura era jantar.  Vanderlei voltou para casa com outra cara, roupas novas e comida para a família. Um alento para o menino que tem aqueles olhos fundos da fome.

Marie Henriqueta Cavalcante, a freira que tem na biografia prêmios nacionais e internacionais pelo seu trabalho com crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual, e também ameaças de morte que lhe renderam a inclusão no Programa de Proteção para Defensores dos Direitos Humanos, diz que o menino é raro. “Estou nesta estrada há muito tempo e eu nunca vi uma criança ter essa coragem de denunciar o abusador. Esse menino tem sede de justiça. Encontrar um coração como o de Vanderlei é difícil.”

Rodrigo e Vanderlei têm uma relação de respeito e amizade. O garoto viu no delegado o “gigante” que poderia ajudá-lo. E o delegado encontrou em Vanderlei a motivação que precisava para enfrentar a dura rotina do município com menor IDH do Brasil, cujo recorde de ocorrências policiais são de crimes de estupro. “É difícil combater um crime tão terrível sem barcos próprios para fazer diligências, sem dinheiro para colocar combustível em barcos alugados. Na Amazônia, os rios são as ruas. Em Melgaço, apenas 25% da população estão na área urbana. O restante está espalhado por essas águas que cortam o município. Melgaço é do tamanho da cidade de São Paulo. Eu faço o que posso. Mas eu tenho limites materiais e legais para fazer mais.”

Os novos amigos de Vanderlei têm agora o desafio de mudar o futuro que o país reserva para crianças, que como ele, nasceram num lar sem recursos materiais e afetivos para pavimentar a sua caminhada até a vida adulta. Ele precisa de tratamento médico e dentário, de vitaminas, de aulas de reforço escolar, roupas e sapatos e, sobretudo, de comida. Vanderlei, a mãe, seus seis irmãos e irmãs precisam comer bem todos os dias.

No dia 5 de Junho, o #Colabora publicou uma reportagem sobre um relatório inédito do Ministério da Saúde. Entre 2011, quando as notificações passaram a ser obrigatórias, e 2015, foram estupradas no país 16.643 crianças menores de nove anos. Isto nos dá uma média de 9 crianças estupradas por dia no país. Se ampliamos a faixa etária até os 12 anos, o número cresce para 28.661 casos de violação. Ou, em média, quase 16 por dia. A tragédia fica ainda maior quando se sabe que várias meninas engravidaram. Entre 2011 e 2014, nasceram 4.021 bebês filhos de mães que foram violentadas antes dos 12 anos.

As denúncias de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes podem ser feitas aos Conselhos Tutelares de cada município, às delegacias especializadas, a uma autoridade policial ou ao Disque 100 (Disque Denúncia Nacional).

 

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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2 comentários “Coração valente

  1. Robson disse:

    Esse caso é um dos poucos cujo são denunciados, entretanto, conclui-se que o problema é ainda maior. Por outro lado, até então existem muitos obstáculos, no que tange a intervenção sociopsicoeducativa e Jurídica na área do abuso e exploração sexual, quanto à falta de infraestrutura dos serviços, não é preciso ir muito longe como também meios de denúncias mais abrangentes.

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