Crochê do presídio ganha a passarela

Um dos modelos feito pelos detentos, numa prévia do que será mostrado no SPFW. Foto Danilo Sorrino

São Paulo Fashion Week terá desfile com coleção de roupas feita por detentos

Por Fernanda Baldioti | ODS 1 • Publicada em 20 de abril de 2018 - 10:41 • Atualizada em 23 de abril de 2018 - 13:56

Um dos modelos feito pelos detentos, numa prévia do que será mostrado no SPFW. Foto Danilo Sorrino
Detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo De Campos Pires, em Juiz de Fora, fazem tricô para o projeto Flor de Lótus. Foto Arquivo Pessoal
Detentos da Penitenciária Professor Ariosvaldo De Campos Pires, em Juiz de Fora, fazem tricô para o projeto Flor de Lótus. Foto Arquivo Pessoal

Duas vezes por semana, 19 detentos da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, se reúnem durante seis horas para fazer crochê. Alunos do Projeto Ponto Firme, eles agora vão tecer um capítulo inesperado de suas vidas: no próximo sábado, dia 21, as criações elaboradas e confeccionadas dentro do presídio vão parar na passarela da São Paulo Fashion Week (SPFW), a maior semana de moda do país.

Eu acredito muito que a educação e as artes em geral têm um papel muito poderoso na transformação pessoal e social, fatores que influenciam diretamente na redução da violência

“Damos um suporte. Os detentos têm o mérito de perceberem a arte no trabalho manual e vislumbrarem no crochê essa oportunidade de resgate da autoestima, da confiança e até de uma perspectiva de vida. Nós mostramos um caminho, orientamos, e eles resolvem se querem seguir”, afirma o idealizador e responsável pelo projeto, Gustavo Silvestre.

A ideia da oficina surgiu após uma conversa que Gustavo teve com a Lica Isak, da loja de costura Novelaria, que também oferece vários cursos manuais em São Paulo.

“Eu acredito muito que a educação e as artes em geral têm um papel muito poderoso na transformação pessoal e social, fatores que influenciam diretamente na redução da violência. O Ponto Firme tenta incentivar o potencial humano e criativo de cada detento. Mas é importante ressaltar que nenhuma iniciativa funciona de maneira isolada”, ressalta.

Um dos modelos feito pelos detentos, numa prévia do que será mostrado no SPFW. Foto Danilo Sorrino
Um dos modelos feito pelos detentos, numa prévia do que será mostrado no SPFW. Foto Danilo Sorrino

Gustavo, que aprendeu a técnica em uma escola de crochê, conta que se surpreendeu ao perceber que os encarcerados não demonstraram preconceito algum no início da oficina:

“Quando eu cheguei lá, tinham três que já faziam, e ensinavam para os outros”, relembra o designer e artesão, que apesar de ver a mãe, as tias e as avós fazendo crochê, foi aprender a técnica em uma escola.

Hoje, é ele quem ensina todo o processo, mas deixa os detentos na hora de criar:

“Estou ali para motivar todo esse processo criativo deles. Tudo é feito por eles, desde os primeiros pontos até o acabamento final”.

Mais do que lançar tendências, Gustavo acredita que o que será apresentado na São Paulo Fashion Week é uma visão mais humanista do sistema penitenciário:

“Vamos mostrar peças atemporais. O que é feito à mão não entra ou sai de moda, no meu ponto de vista. Para mim, o crochê é arte”.

Em apenas dois anos e meio de existência, o Ponto Firme já formou cerca de 100 pessoas, com material doado pela fabricante de linhas Círculo S/A. Além de receberem um certificado ao final dos módulos do curso (básico, intermediário e avançado), os detentos têm reduzido um dia de sua pena a cada 12 horas no projeto.

No último dia 9, foi apresentada uma prévia do desfile em um evento para convidados e autoridades. Para Gustavo, ali eles realmente entenderam a grandeza do trabalho que estão fazendo:

“Eles se emocionaram e ficaram ainda mais entusiasmados. Tanto que chegamos a aumentar o número de peças para o desfile”.

Além de receberem um certificado ao final dos módulos do curso, os detentos têm reduzido um dia de sua pena a cada 12 horas no projeto. Foto Danilo Sorrino
Além de receberem um certificado ao final dos módulos do curso, os detentos têm reduzido um dia de sua pena a cada 12 horas no projeto. Foto Danilo Sorrino

A estilista Raquell Guimarães já passou por este momento de expectativa de apresentar em uma semana de moda um trabalho manual feito por homens que aprenderam a tricotar em uma penitenciária. Em 2016, ela desfilou no Minas Trend peças de tricô feitas por ex-detentos. Na passarela, em meio às modelos, estava Marcella Moreira, ganhadora do concurso Miss Prisional, que escolhe a presa mais bonita do Brasil, em uma iniciativa importante para a autoestima delas.

Por cinco anos, Raquell coordenou o projeto Flor de Lótus, que começou na Penitenciária Professor Ariosvaldo De Campos Pires, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Toda a produção era vendida pela marca dela, a Doisélles. Os presos, por sua vez, além da redução de pena, ganhavam salários e aprendiam um novo ofício. Em 2014, quando a estilista se mudou para Belo Horizonte, deu início a um projeto no Complexo Penitenciário Público-Privado (CPPP) de Minas Gerais, localizado em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de BH, novamente com sentenciados do gênero masculino.

Depois de gerar dois filhos e adotar um terceiro, ela começou a se alternar entre a fazenda da família, em Ipoema (MG), e a capital, mas não abandonou o projeto. A parte intramuros ficou a cargo de Marcela Mafra, que passou a fazer uma oficina de costura com mulheres do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto.

“Para ter um ateliê dentro de uma penitenciária ou em qualquer outro tipo de trabalho social, é preciso estar lá dentro todos os dias. As peças da Doisélles hoje são todas feitas por mim e por ex-detentos que aprenderam a tricotar comigo quando estavam presos, ganharam liberdade e hoje formam uma rede de produção”, conta Raquell, que, junto a outros voluntários, também tem se empenhado para colocar de pé uma penitenciária do modelo Apac (com uma metodologia de valorização humana), em Itabira, que será inaugurada em breve.

Fernanda Baldioti

Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.

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