Aula de inclusão em Santa Teresa

Marcelo e Dudu no pátio do Ceat, aguardando o fim do recreio. Foto Angelica Brum

Colégio dá oportunidade de trabalho para ex-alunos com necessidades especiais

Por Angélica Brum | ODS 1 • Publicada em 26 de maio de 2017 - 17:15 • Atualizada em 26 de maio de 2017 - 23:15

Marcelo e Dudu no pátio do Ceat, aguardando o fim do recreio. Foto Angelica Brum
O inspetor Marcelo Miranda e Dudu, no pátio do Ceat, aguardando o fim do recreio. Foto Angelica Brum
O inspetor Marcelo Miranda e Dudu, no pátio do Ceat, aguardando o fim do recreio. Foto: Angelica Brum

Fim do recreio. O sinal toca. No canto do pátio, um grupo insiste numa rodinha de vôlei. O inspetor chega lembrando que “acabou”. Os meninos continuam. O funcionário entra, então, no centro do círculo e tenta em vão pegar a bola. Quando notam que estão fazendo o inspetor de “bobinho”, um dos alunos chama a atenção de todos: “Vamos parar com isso. É o maior vacilo”. Fim de jogo. O funcionário passa a ser o dono da bola.

Uma lição de respeito em pleno recreio. Um desdobramento daquilo que os alunos do Centro Educacional Anísio Teixeira, o Ceat, aprendem nos domínios do castelo de inspiração fiorentina onde funciona a escola no bairro de Santa Teresa. Uma aula prática de cidadania em nível avançado quando a gente chega mais perto. O inspetor é um ex-aluno com necessidades especiais que ganhou o emprego este ano.

Nunca nos vimos como uma escola ‘inclusiva’. Sempre foi assim. Todos os alunos são bem-vindos. Faz parte da nossa dimensão de responsabilidade social colocar a condição humana antes da deficiência

Com a camiseta de funcionário, Eduardo Prates, de 19 anos, não faz história sozinho. Aos 21 anos, Helena – nome fictício da nova estagiária da educação infantil que não quis se identificar “para evitar os rótulos” – vive a experiência de trabalhar na escola onde chegou aos 4 anos. Assim como Eduardo, também foi acolhida pelo Ceat depois de ser reprovada pela intolerância de um punhado de escolas entre as mais tradicionais da zona sul do Rio de janeiro. Tudo por não se encaixar nos padrões de normalidade.

Mais de uma década depois, a situação não mudou muito. A grande maioria dos colégios insiste em subterfúgios para driblar a lei que obriga a matrícula de um determinado número de alunos especiais. Sem falar naqueles que se recusam a aceitar quem repete de ano. A gente chega na escola de Santa Teresa e percebe que lá a conversa é outra. No recreio, crianças em cadeira de rodas, outros com tipos de diferentes de deficiência motoras ou intelectuais… todos se misturam às brincadeiras.

As cenas do recreio, com a vista deslumbrante do Rio de Janeiro num dia de outono, ilustram o espanto da diretora Emília Fernandes diante do interesse do #Colabora. Ela nos recebe e admite que tem dificuldade em ver notícia no dia a dia da escola. Já que, para eles, não existe educação sem inclusão.

“Nunca nos vimos como uma escola ‘inclusiva’. Sempre foi assim, desde que abrimos no Jardim Botânico, (bairro da zona sul carioca), em 1975. Todos os alunos são bem-vindos. Faz parte da nossa dimensão de responsabilidade social colocar a condição humana antes da deficiência. A gente busca as semelhanças e foge dos rótulos. Os sujeitos surpreendem. E não aceitamos verdades do tipo ‘aquele menino que tem aquela síndrome, não vai dar em nada.’ ‘’

Os alunos João Pedro e Antonio Montoro: "Para ter uma utopia, a gente precisa sonhar". Foto Angélica Brum
Os alunos João Pedro e Antonio Montoro: “Para ter uma utopia, a gente precisa sonhar”. Foto: Angélica Brum

Perfeito. Mas daí até os meninos com deficiência intelectual trabalharem na escola há uma boa distância. Mesmo assim, a direção enxerga a novidade quase como um desdobramento natural da linha pedagógica.

“Trabalhamos todas as questões da inclusão. E, desde a educação infantil, a gente percebe uma preocupação dos pais: ‘E depois do Ceat, o que virá?’ Por conta disso, estamos fazendo essa experiência”, completa frisando a ideia de conhecimento através da prática e da vivência. Um aprendizado que vem sendo compartilhado por toda a comunidade que festejou a decisão nas redes sociais.

“Se não fossem as postagens do Facebook as pessoas nem iam ficar sabendo”, conclui.

As postagens, no entanto, não contam como o processo aconteceu. A iniciativa de contratar Dudu partiu da própria direção. Ainda nos tempos de estudante, ele tinha o hábito de avisar aos colegas e aos professores que o recreio havia acabado. “Ele saia gritando: ‘Acabou’. E, além disso sempre foi bastante responsável. Achamos, então, que podia ser uma boa tê-lo como inspetor”, lembra Emília.

Depois de conversar com os pais e o terapeuta do ex-aluno, a estratégia foi colocada em prática. Para alegria de Eduardo, que faz planos para o salário: “Vou ganhar muito dindim e juntar tudo para visitar minha prima na Califórnia. Você quer ver o Facebook dela? Eu adoro a Califórnia.”

Mal começou e já pensa nas férias? Mas… e o trabalho? A reportagem está aqui para conhecer o seu trabalho. “Estou gostando, lógico”, ele afirma e muda de assunto. Quer saber quando vai rever os colegas que se formaram no ano passado. A diretora responde que, agora, ele vai encontrar os amigos fora dali. Eles foram embora, estão na faculdade. Em compensação, ele virou funcionário e usa uniforme por causa disso.

Dudu ouve com atenção e tenta mais uma vez acabar com a entrevista. “Que hora são?”, pergunta olhando para o relógio no pulso. “Daqui a pouco, é o recreio. Tenho que sair.”

Não deixar que os alunos matem aula faz parte de um protocolo de tarefas planejadas para Dudu. Tudo montado sob supervisão de funcionários da escola e dos terapeutas dele. Ele trabalha três vezes por semana, de nove ao meio-dia. Realiza atividades internas: circula pelas coordenações e leva material para a xerox.

Helena também cumpre uma carga horária de três vezes por semana. Sempre na parte da manhã. Ao chegar para a entrevista na sala da direção, comenta, esbaforida, que é preciso paciência para lidar com um determinado aluno. Na sequência, conta como fez para mediar um conflito entre o tal menino e duas colegas. O talento para observação revelado na última festa do pijama da escola a qualificou para o estágio como auxiliar na educação infantil. Uma ideia da mãe da aluna prontamente encampada pela direção.

Vou ganhar muito dindim e juntar tudo para visitar minha prima na Califórnia. Você quer ver o Facebook dela? Eu adoro a Califórnia

A angústia de ver a filha longe da escola aumentava à medida em que se aproximava o fim do terceiro ano do ensino médio. A mãe, então, começou a perguntar a Helena o que ela gostaria de fazer depois da formatura. Chegou a sondar uma vaga na empresa de paisagismo de uma parente.

“Ela é forte, grande, podia carregar peso. Mas ela disse que não. Aí, pensei que ela poderia tratar de idosos e nada. Quando perguntei se seria uma boa cuidar de crianças, ela me disse que adorava crianças e que poderia ajudar com os alunos do Ceat. Falei com a Emília (a diretora) e ela topou na hora. O Ceat é único no mundo. Eles vão muito além dos domínios de um colégio.”

Talvez por isso, depois de reconhecer que “dá muito trabalho cuidar dessas crianças”, Helena admite: “Quero ficar no Ceat para sempre.” Até lá, a equipe tem tempo para ir descobrindo com ela os talentos da estagiária. Durante a conversa com a professora Maria do Carmo Magalhães Ribeiro e a diretora, as três discutem as atribuições do cargo. Helena reconhece que “não é boa em contar histórias”. Em compensação, ela se sai bem na oficina de artesanato.

“A gente tenta motivá-la e a Helena vai se encontrando. Lidar com ela é um aprendizado constante para gente. Como, aliás, acontece no convívio com qualquer criança”, compara a professora.

Aprendizado também parece ser a tônica nas famílias dos novos funcionários do Ceat. A mãe de Helena é médica e vive, desde o nascimento da filha, a dinâmica de tentativa e erro.

“Esse é o maior sofrimento: está todo mundo aprendendo a lidar com essas crianças. Falta diagnóstico. E, nos casos em que se chega a um diagnóstico, a gente não tem um remédio. Eu sou mãe, as mães acolhem os filhos como eles vêm. Com a sociedade não funciona desta forma. Os nossos filhos têm que se adaptar ao mundo. E o mundo não tem a boa vontade do Ceat.”

A mãe do Dudu também destaca o acolhimento que o filho recebe desde que chegou à escola, aos 8 anos. A economista Claudia Trindade Prates tem certeza que o Dudu sempre foi feliz lá.

“Agora, ele se sente responsável, tem um projeto. Ele diz que gosta de trabalhar. E já anunciou que vai fazer tanta coisa com o salário: que vai viajar e vai dar dinheiro para todo mundo. Meu marido e eu ficamos tranquilos porque ele tem uma ocupação, não fica em casa o tempo inteiro, mantém o contato com amigos que são carinhosos com ele. Já combinamos de fazer um churrasco no sítio para reunir os colegas que foram para a faculdade.”

Ao comentar a nova rotina do Dudu, Claudia nos leva, outra vez, ao tema “aprendizado” e repete uma expressão usada pela mãe de Helena. “Vamos vivendo um ano a cada ano. Sempre fui do tipo que aceita, carrega e abraça. E, mesmo assim, tive que mudar. O Eduardo é muito ansioso, eu também. E, por causa dele, precisei aprender a controlar minha ansiedade. Desde cedo, procurei preservar minha vida pessoal e ele acabava me expondo muito. Então, fui me adaptando a isso também.”

De volta à escola, mais lições. O inspetor Marcelo Miranda, o chefe do Dudu, conta que a chegada do novo funcionário é só mais um desafio no currículo dele, que há 14 anos trocou a aeronáutica pelo emprego no Ceat.

“A convivência com os alunos mudou minha visão do mundo. Tem sempre uma novidade por aqui. Agora, lidamos com a contratação do Dudu. E ele está se saindo bem. Mas, assuntos como o feminismo, que eles discutem abertamente aqui, mexem comigo. Tanto que passei a trazer as letras das músicas que componho para mostrar às alunas.”

A torre do tradicional castelo de inspiração fiorentina, em Santa Teresa. Foto Angélica Brum
A torre do tradicional castelo de inspiração fiorentina, em Santa Teresa. Foto: Angélica Brum

Funcionários, pais, professores, a sociedade inteira está se transformando. O psiquiatra Fernando Ramos fecha o diagnóstico positivo. Coordenador do programa de Residência em Psiquiatria da Infância e da Adolescência no Instituto Municipal Philippe Pinel, da Prefeitura do Rio de Janeiro, ele também fala em aprendizado.

“Vivemos um período de experimentação. E, felizmente, não são apenas em instituições particulares que vemos experiências bem sucedidas de pessoas com deficiência intelectual desenvolvendo trabalhos protegidos, que seguem a lógica da inclusão.” Uma visão otimista, sem fechar os olhos para o realismo e seus movimentos de idas e vindas, acertos e erros, típicos do processo educacional. “As pessoas já entenderam que a inclusão de indivíduos especiais não tem volta. Mas é preciso paciência para as coisas avançarem.”

Vejo tudo isso aqui como um refúgio de preparação. Para ter uma utopia, a gente precisa sonhar. Aqui a gente se fortalece para ter a nossa cabeça feita quando chegar lá em embaixo. E o mais importante é que o Dudu está feliz. Ele só sente falta dos alunos que foram embora. A gente também. As formaturas sempre deixam saudade

Mudar uma sociedade inteira pode ser bem mais complicado do que adaptar a rotina de um colégio para receber colaboradores especiais. Ainda mais quando, segundo a avaliação da direção, a imensa maioria dos pais concorda com o projeto de educação desenvolvido ali. Mas, talvez, a experiência de aceitação do outro com suas singularidades na sala de aula — ou nos pátios — pode ser um caminho, como aponta Antonio Montoro, aluno do Ceat. Quando a gente pergunta se a escola não seria uma ilha de acolhimento cercada de realidade por todos os lados, ele é categórico:

“Vejo tudo isso aqui como um refúgio de preparação. Para ter uma utopia, a gente precisa sonhar. Aqui a gente se fortalece para ter a nossa cabeça feita quando chegar lá em embaixo. E o mais importante é que o Dudu está feliz. Ele só sente falta dos alunos que foram embora. A gente também. As formaturas sempre deixam saudade. ”

A forma acolhedora e natural com que os alunos receberam os novos funcionários enche de orgulho a diretora Emília Fernandes. Tanto que ela se permite algumas certezas ao se lembrar da reunião em que avisou a todos da contratação do Dudu.

“Foi uma explosão de alegria. A escola é toda acolhedora. O aplauso entusiasmado dos meninos dá esperança. É o reconhecimento da educação que estamos dando, do projeto em que acreditamos. E, quem sabe, um dia, daqui a 30 anos, eles não vão estar aqui de volta fazendo um trabalho bacana”, conclui a diretora, numa alusão ao fato de a repórter ter estudado no Ceat.

Tenho pouco tempo para recordar o passado. De repente, Dudu chega perto para dizer que não está mais nervoso, que gostou “desse negócio de dar entrevista”. Que ele só precisava “aprender como era”. E, antes de sair, pede que eu anote o número do telefone dele. “Qualquer coisa que você precisar, pode me mandar um zap, tá?”.

Angélica Brum

Virou clichê dizer que a gente gosta de contar histórias. Sem nenhuma pretensão de originalidade, reconheço que gosto mesmo é de ouvir histórias. Assim, desde a formatura na UFRJ, há mais de 25 anos, tento passar adiante notícias que a vida me apresenta com generosidade. Seja em sites, em tevê, onde dirigi o documentário "Vida Corrida", em revistas - Elle, Marie Claire, Caras e Veja, ou em jornais - JB e O Globo.

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6 comentários “Aula de inclusão em Santa Teresa

  1. Joao Baeta disse:

    Pois e!
    Estudei lá por 10 anos……. Sinto saudades do CEAT
    E a diretora Emilia Fernandes esta de parabéns!
    As vezes dou passada la e sou conhecido ate hoje pela diretora, coordenadores, inspetores…..!

  2. Leonor disse:

    Esta é uma escola que faz a diferença. E dá orgulho pra todos nós! Parabéns, Angélica, pela linda matéria. E parabéns, de novo, à Emília, pelo trabalho de todos do Ceat.
    Que esta iniciativa se repita em outros ambientes, escolares ou não.

  3. Crisrina disse:

    AO conhecer o trabalho pedagógico do CEAT, vejo que de grão em grão teremos de fato uma inclusão em nosso país, vocês estao de parabéns!!!!!!

  4. Paulo Nunes disse:

    Sou avô de uma aluna do Ceat, fico super feliz em ver o nível de humanismo que atravessa o projeto pedagógico desta escola, educacão solidária para a vida. Paulo Nunes

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