O drama dos refugiados LGBT na Itália

Manifestantes protestam contra as restrições à chegada de imigrantes na Itália. Foto Massimiliano Ferraro/NurPhoto

Duplamente discriminados, pela origem e pela orientação sexual, eles são a parte mais vulnerável da imigração

Por Janaína Cesar | ODS 1ODS 5 • Publicada em 23 de agosto de 2018 - 08:11 • Atualizada em 25 de agosto de 2018 - 16:46

Manifestantes protestam contra as restrições à chegada de imigrantes na Itália. Foto Massimiliano Ferraro/NurPhoto
Manifestantes protestam contra as restrições à chegada de imigrantes na Itália. Foto Massimiliano Ferraro/NurPhoto
Manifestantes protestam contra as restrições à chegada de imigrantes na Itália  (Foto Massimiliano Ferraro/NurPhoto)

(Colaborou Caroline Cavassa) – Victor tem 26 anos e veio da Nigéria. Após uma tentativa frustrada de atravessar o mediterrâneo em busca de liberdade, chegou à Itália em junho de 2017. Não fugia da fome e nem da guerra. Se viu obrigado a escapar para não passar a vida na clandestinidade ou em cárcere, porque, em seu país, a homossexualidade é punida com até 14 anos de prisão. Dentro do contexto da imigração e do direito ao asilo, a questão dos refugiados LGBT segue à margem desse dramático fenômeno. Duplamente discriminados, seja pela origem ou pela orientação sexual, eles são a parte mais vulnerável da imigração.

Segundo o documento State-Sponsored Homophobia existem 72 países que criminalizam relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Em 8 países, como Irã, Sudão e Arábia Saudita, é prevista a pena de morte.

Não existem dados ou estatísticas oficiais que indiquem quantos na Europa pediram asilo pela orientação sexual, até porque é muito difícil se declarar homosexual no país de origem. Mas basta dar uma olhada no último relatório da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association – Ilga – para entender o quanto é perigoso assumir a própria sexualidade em certos lugares do mundo. Segundo o documento intitulado State-Sponsored Homophobia, publicado em outubro de 2017, existem 72 países que criminalizam relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Em 8 países, como Irã, Sudão e Arábia Saudita, é prevista a pena de morte. Em 14, como Guiana, Etiópia e Índia, a prisão perpétua. Em outros como Angola, Senegal e Argélia, até 14 anos de prisão. Nessa longa lista homofóbica se encontram três países, incluindo a Rússia, onde existem leis que limitam a liberdade de expressão quando o tema é orientação sexual.

Victor conta que seus pais sabiam que ele era gay e, vendo o sofrimento do filho, o incentivaram a seguir viagem em direção à Itália. O jovem nigeriano teve que fazer uma escolha difícil, além da família, deixou para trás também o seu amor. De seu país partiu em direção à Líbia e, chegando lá, descobriu que havia sido enganado pelo traficante de pessoas. Sem mais dinheiro para prosseguir, se viu preso outra vez a um país que condena homossexuais. Por três meses, economizou e pegou trabalhos eventuais até que, finalmente, conseguiu a quantia que precisava para encarar a perigosa travessia do Mediterrâneo.

Mario di Martino, vice presidente do Movimento identità transessuale: “O sistema não é preparado para acolher refugiados LGBT". Foto Janaína Cesar
Mario di Martino, vice-presidente do Movimento Identità Transessuale: “O sistema não é preparado para acolher refugiados LGBT”. (Foto Janaína Cesar)

Somente nos primeiros seis meses deste ano, 1408 pessoas morreram afogadas tentando chegar à Europa. Uma quantidade enorme de vítimas, mas esses números se referem apenas às pessoas que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ( ACNUR) foi capaz de rastrear com satélites graças ao bom tempo. Mesmo sem ter garantias de que não entraria para a estatísticas de mortos, Victor estava decidido a subir em um daqueles barcos porque, para ele, “qualquer alternativa de fuga é válida quando se corre o risco de ser assassinado ou preso”. No drama da fuga, o nigeriano pode até se considerar um sujeito de sorte, pois não passou pelos fatídicos centros de identificação líbios, lugares extremamente violentos que estão mãos da organização criminosa local.

O périplo de Victor não terminou com a travessia do mar. Desembarcado na Sicília, foi parar em um Centro de Primeiros Socorros e Acolhida (CPSA), em Lampedusa, para ser transferido, em fevereiro deste ano, para um Centro de Acolhida do Sistema de Proteção para Solicitações de Asilo e Refúgio (SPRAR) em Roma. Sentado em torno a uma mesa redonda que fica em uma das salas da Associação LGBTI da Itália ( Arcigay), em Roma, o jovem nigeriano e outros refugiados LGBT contam suas histórias embaladas por medo e esperanças de um recomeço de vida na Europa. Por enquanto, o jovem está estudando italiano na comunidade Santo Egídio, uma das instituições de caridade do Vaticano. Lá ele também faz um curso de economia doméstica. “Encontrar trabalho não é fácil, principalmente pela falta do visto de estadia”, lamenta. O documento é emitido pelas autoridades do sistema de imigração italiano para garantir a permanência legal de qualquer imigrante, seja refugiado, ou não, em território italiano.

Pense em uma pessoa que vem de um país onde assumir a homossexualidade é uma condenação à morte. Essa pessoa chega à Sicília e deve dizer a outras pessoas que nunca viu na vida que é gay. O que você acha que responderá?

Ao analisar os pedidos de visto, a Comissão de Justiça Italiana se baseia na Convenção de Genebra de 1951, que diz que imigrantes oriundos de países onde existem perseguições políticas, guerras civis ou qualquer outro fato que represente risco de morte aos cidadãos podem obter status de refugiado, porém essa análise se complica quando os pedidos de asilo são para pessoas LGBT que nem sempre ocorrem de maneira justa e coerente. Segundo Mario di Martino, vice-presidente do Movimento Identità Transessuale (MIT), “o sistema não é preparado para acolher refugiados LGBT porque existe um despreparo dos operadores que integram as comissões, : “Eles não conhecem o tema”, diz o italiano, completando: “É possível que um operador seja homofóbico ou transfóbico. Neste caso, para fazer um trabalho bem feito, ele deve primeiro rever seus próprios preconceitos, o que, na verdade, não acontece.”

Valentina Coletta, do Mit: "Para muitos ainda é um tabu se declarar abertamente gay". Foto Janaína Cesar
Valentina Coletta, do Mit: “Para muitos, ainda é um tabu se declarar abertamente gay” (Foto Janaína Cesar)

Di Martino diz que durante as entrevistas são pedidos muitos detalhes da vida pessoal da pessoa que comprovem sua orientação sexual. “A comissão pede que a pessoa prove ter ou ter tido ou uma relação com outra pessoa do mesmo sexo ou prove pertencer a uma associação gay italiana”, explica. Sua colega de trabalho no MIT, Valentina Coletta, acrescenta que “para muitas dessas pessoas ainda é um tabu se declarar abertamente gay. Pense em uma pessoa que vem de um país onde assumir a homossexualidade é uma condenação à morte. Essa pessoa chega à Sicília e deve dizer a outras pessoas que nunca viu na vida que é gay. O que você acha que responderá?”, questiona Coletta.

Outra questão que deve ser lembrada no momento da entrevista é que, em muitas culturas, não existe a palavra gay. “Nós definimos terminologias que são usadas por pessoas brancas ocidentais. Nós nos identificamos com o símbolo do arco-íris, mas, para certas culturas, isso não significa nada, porque existem outras formas para expressar a orientação sexual. Pedimos a essas pessoas que se exponham e exponham o que são, o que desejam ser, em uma forma colonialista”, diz Coletta.

Para um africano, essa não é uma tarefa fácil. Eu sempre tive medo de assumir minha orientação sexual ou dizer que me relaciono com pessoas do mesmo sexo. Eu poderia morrer. Então fazer isso num ambiente frio de Justiça, me fez ficar tão inseguro como na Nigéria

Foi exatamente o que aconteceu com Victor. Durante a audiência com a comissão, ele se sentiu extremamente assustado, pois, pela primeira vez, ele teve de assumir a sua homosexualidade. “Para um africano, essa não é uma tarefa fácil. Eu sempre tive medo de assumir minha orientação sexual ou dizer que me relaciono com pessoas do mesmo sexo. Eu poderia morrer. Então fazer isso num ambiente frio de Justiça, me fez ficar tão inseguro como na Nigéria”. Com os olhos cheios de lágrimas, o jovem contou que o intérprete responsável por traduzir o seu depoimento não foi fiel à sua narrativa. “No fim, tive que assinar o depoimento em italiano, diante do juiz, mesmo sem entender absolutamente nada do idioma.”

Para tentar dar uma resposta ao problema, a ACNUR publicou em 2012 um documento chamado Diretrizes para matérias internacionais de proteção , formulado para o reconhecimento de status de refugiados com base na orientação sexual e identidade de gênero. Cristina Franchini, da ACNUR Itália, explica que o documento apresenta uma série de orientações aos operadores sobre como fazer uma entrevista de maneira respeitosa e não ofensiva. “Esse tipo de orientação é fundamental na hora da avaliação, já que a entrevista é um momento crucial e muito complicada porque, normalmente, não existem meios que possam comprovar que aquela pessoa foi perseguida por conta da sua opção sexual ou identidade de gênero, a menos que o refugiado em questão não tenha feito parte de algum movimento de ativismo LGBT”, diz a italiana.

Múltiplas discriminações

Os requerentes de asilo LGBT enfrentam uma dupla discriminação. “Se já existe pouca sensibilidade com a questão dos refugiados em geral, imagine se eles também são LGBT?”, questiona Valentina Coletta, do Mit. “Eles pedem asilo na Europa, mas são vítimas de uma dupla discriminação, aliás, de múltiplas discriminações: como refugiado; como LGBT; como negro ou muçulmano e ainda na própria comunidade LGBT italiana que, no fundo, reflete os mesmos preconceitos da sociedade italiana que é, em partes, racista.”

Coletta lembra que também existe um problema estrutural no acolhimento dessas pessoas. “Um gay ou trans que escapou de seu país corre sério risco de sofrer violência se ficar em uma mesma estrutura de acolhimento que seus conacionais. A cultura homofóbica continua a mesma: no país de origem o teriam perseguido ou até matado”, diz.

Centros de acolhimento LGBT+

A solução segundo Coletta é a criação de centros de acolhimento dedicados a pessoas LGBT. Estruturas assim eram praticamente inexistentes na Europa até poucos anos atrás. O primeiro nasceu em Berlim pelas mãos da associação Schwulenberatung com capacidade para atender cerca de cem pessoas. A Itália também dá os primeiros passos. O MIT abriu em 10 de julho passado, em Bolonha, a primeira casa de acolhimento do país que abriga quatro pessoas. Coletta diz que não foi muito fácil achar um imóvel para alugar, pois quando diziam a destinação, encontravam uma série de empecilhos.

Já na cidade de Modena, a Arcigay destinou um apartamento para requerentes de asilo LGBT. Segundo Giorgio Dell’Amico, responsável do setor imigração da associação “nós reservamos um apartamento para destiná-lo tanto a refugiados LGBT quanto italianos expulsos de casa por sua homossexualidade. Alguns, contrários à novidade, afirmaram que esse tipo de acolhimento confinaria os refugiados LGBT em guetos. Dell´Amico discorda e diz que esse é um falso problema “pois criamos ambientes protegidos até que essas pessoas consigam ser autossuficientes”.

 

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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