Racismo faz escola, mas secretário prefere ignorar

Janine Ribeiro: “Penso que a nossa prioridade absoluta deveria ser garantir que a criança até os sete ou oito anos completados, saibam ler, escrever e fazer as operações aritméticas”. Foto Custódio Coimbra

Cesar Benjamin afirma que não existe preconceito racial na rede municipal de educação do Rio, mas alunos e professora relatam agressões

Por Lauro Neto | ODS 4 • Publicada em 13 de dezembro de 2017 - 09:11 • Atualizada em 13 de dezembro de 2017 - 12:00

Janine Ribeiro: “Penso que a nossa prioridade absoluta deveria ser garantir que a criança até os sete ou oito anos completados, saibam ler, escrever e fazer as operações aritméticas”. Foto Custódio Coimbra
De uma população de cerca de 77 milhões de crianças e jovens, de zero a 24 anos, o número geral de matrículas na educação básica e superior é de 52 milhões. Ou seja, 25 milhões (ou 30%) de estudantes brasileiros estão fora das salas de aula
A rede municipal tem 650 mil alunos, muitos deles negros: histórias de racismo se repetem (Foto Custodio Coimbra)

Elas não são famosas nem filhas de celebridades. A dor delas não sai nos jornais nem causa comoção nas redes sociais. Mas o sofrimento é sentido na pele. Literalmente. Em comum, elas têm histórias do racismo vivenciado na rede municipal de ensino do Rio. Aquela mesma em que o secretário de Educação, Cesar Benjamin, disse que não conhecia nenhum caso de discriminação. A declaração foi dada em entrevista ao jornal “Estado de S. Paulo” após um post em que Benjamin criticava a atriz Tais Araújo por ter dito que pessoas mudavam de calçada por causa da cor de seu filho. Mas caiu no esquecimento após os ataques racistas à filha dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Assim como os mais famosos, as vítimas de preconceito racial na escola não esquecem as marcas de serem chamadas de “escrava” ou “macaca”. E garantem que isso não tem nada a ver com “histeria racial”, como classificou o secretário.

Com a palavra, as ‘anônimas’

Maria Eduarda Marco, de 13 anos, diz que já se sentiu bastante incomodada com os “comentários desnecessários e um pouco racistas” sobre seu black power. Na Escola Municipal Emilio Carlos, em Guadalupe, é comum ser chamada de cabelo duro e “pão careca” – em referência ao funk “A pão careca tá passando / Passa o rodo / Você tem cabelo ruim”. Se o duplo preconceito da letra a aborrece, o que a deixa mais indignada hoje é ver outras pessoas discriminadas. Ela ilustra com a história de um colega de turma que ouviu a frase “tinha que ser preto” após esconder o estojo de outra aluna.

Antes, meu cabelo era bem crespo. Teve um dia que eu fui pra escola com ele solto, e as crianças começaram a me zoar falando que meu cabelo era duro,  bombril, perguntaram se eu queria banana, que eu parecia uma macaca… Eu cheguei para a minha professora (ela era branca) e falei o que estava acontecendo, ela simplesmente me ignorou, não fez nada com as tais crianças e acabou me ofendendo também

“Aprendi a me amar do jeito que sou e com isso não me importo mais com os comentários quando se trata de mim, agora, com as pessoas à minha volta, eu me revolto muito mais. Um material escolar de uma menina da minha sala sumiu. E esse meu amigo fazia muito isso, pegava as coisas e escondia. Quando ela descobriu que foi ele, logo disse: ‘tinha que ser preto!’. Fiquei revoltada diante a situação. Falei que eu também era negra e nunca peguei ou roubei nada dela e nem de ninguém. Não é porque somos pretos que a gente faz isso. Nessa situação o comentário foi direcionado totalmente à minha cor”, conta Eduarda.

Questionada sobre a declaração de Benjamin em relação à inexistência de casos de discriminação na rede municipal, ela é didática.

“Diante da situação que presenciei, acho que isso é mentira”.

Amiga da adolescente e com mesma idade dela, X., que pediu para não ter sua identidade nem escola reveladas, relembra um episódio que contou com a complacência de uma professora da 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), na Zona Oeste do Rio:

“Antes, meu cabelo era bem crespo. Teve um dia que eu fui pra escola com ele solto, e as crianças começaram a me zoar falando que meu cabelo era duro,  bombril, perguntaram se eu queria banana, que eu parecia uma macaca… Eu cheguei para a minha professora (ela era branca) e falei o que estava acontecendo, ela simplesmente me ignorou, não fez nada com as tais crianças e acabou me ofendendo também”.

A professora Julia Dutra no espetáculo "O mito da criação": cultura afrobrasileira nas escolas (Foto: arquivo pessoal)
A professora Julia Dutra no espetáculo “O mito da criação”, durante o evento Afrocena, na UFRJ (Foto: arquivo pessoal)

Professora transexual diz que sofre mais preconceito pela cor

O racismo não se dá apenas entre estudantes ou de professores com alunos, mas acontece nas diversas esferas das relações interpessoais e de poder. Julia Dutra, professora transexual e negra, perde a conta do número de vezes em que foi vítima de preconceito, seja por seus pares, superiores, subordinados e até funcionários da Secretaria municipal de Educação.

No meu caso, é tênue a linha do racismo e da transfobia, mas acho que sofro mais preconceito pela cor

“Na primeira escola municipal em que trabalhei, quando entrei, me perguntaram: é você que serve o cafezinho? Outro episódio: fui na prefeitura resolver uma questão burocrática e uma moça da secretaria de educação me perguntou: ‘a senhora é da Comlurb?’ Falei: ‘Não, sou professora. Por quê?  Gari tem cara?’. Sempre ficam sem graça, pois respondo na hora. A moça ficou desconcertada dizendo que não era isso que eu estava  pensando e mudou o assunto. No meu caso, é muito tênue a linha do racismo e da transfobia, mas acho que sofro mais preconceito pela cor’, compara Julia.

Professora de Artes e Teatro na prefeitura do Rio, ela tenta trabalhar a cultura afrobrasileira em sala de aula (de acordo com a Lei 10.639), mas sente rejeição por parte dos alunos, que consideram “coisa de macumba”. Faz a ressalva de que na escola municipal em que trabalha atualmente é muito bem acolhida e valorizada, além de deixar claro que a discriminação não é exclusiva da rede, mas também acontece na estadual, na qual é diretora de um colégio noturno.  Lá, ela ouviu a sutil sugestão de uma coordenadora para fazer uma escova no seu cabelo black power. Percebeu o recado racista nas entrelinhas, marcou posição e respondeu que valorizava a estética negra.

O triste é que, na maioria das vezes, o racismo vem dessa forma sutil e maquiado, ‘não comprometendo o agressor’. Está em todos os lugares. Se a escola pública é um microcosmo da sociedade, logo, lá também haverá racismo. Já ouvi de um aluno que mulher preta é só para transar.

“O triste é que, na maioria das vezes, o racismo vem dessa forma sutil e maquiado, ‘não comprometendo o agressor’. Está em todos os lugares. Se a escola pública é um microcosmo da sociedade, logo, lá também haverá racismo. Já ouvi de um aluno municipal que mulher preta é só para transar. Recebemos uma visita de uma palestrante loira, e ele dizia estar apaixonado pela beleza da moça. Para provocar, o questionei sobre padrões de beleza e o que o levava a ficar encantado por uma moça loira. Falei que a negra também é muito bonita, e ele me respondeu assim: ‘Poxa, professora. Sabe como é, né? As pretas é (sic) só pra transar, e essa aí é para casar’. E, para provocar mais ainda, perguntei: ‘Então eu não sirvo pra casar, né?’.  Ele, muito sem graça, respondeu: ‘Mas a senhora é diferente. É professora’. Na verdade, esse meu aluno só reproduziu o pensamento de milhares de homens brasileiros”, ela relata.

Laís Santos: ela participa de um grupo que luta contra o racismo e também a evasão escolar (Foto: arquivo pessoal)
Laís Santos: ela participa de um grupo que luta contra o racismo e também a evasão escolar (Foto: arquivo pessoal)

Alunos combatem discriminação com projeto “Eu Vivo Favela”

Formanda do ensino médio na rede estadual, Laís Santos, de 18 anos, acredita que tenha sofrido mais preconceito nas escolas municipais pelas quais passou no primeiro ciclo. Foi uma fase difícil, na qual era mais ingênua e indefesa, e que deixou marcas. Hoje, ela integra o projeto “Eu Vivo Favela”, que desenvolve um trabalho tanto de inclusão dos jovens negros e marginalizados quanto de reinserção de estudantes que estão em situação de evasão escolar, para reintegração à rede educacional.

É um passado presente. Me sentia incomodada quando falavam de racismo na escola, pois os olhares de pena sempre se voltavam para mim. E quando falavam de escravidão também. Cheguei a ser chamada de escrava por um colega de classe.

Por meio de esquetes que mostram o preconceito cotidiano, os cerca de 20 estudantes que compõem o grupo tentam realizar o desafio de conscientização e empoderamento para construir um pensamento de respeito e militância que incentive o negro a lutar pelos seus direitos e se impor na sociedade. Laís conta que sentiu falta disso na escola para lidar com agressões em “tom de brincadeira”, como “você ficou mais tempo no forno, carvão, narigudinha, teu cabelo é muito estranho, é duro”. Ela diz que sua autoestima só não foi mais afetada porque sua família a apoiou, ensinou a se posicionar e a não aceitar ser chamada por certos nomes.

“É um passado presente. Me sentia incomodada quando falavam de racismo na escola, pois os olhares de pena sempre se voltavam para mim. E quando falavam de escravidão também. Cheguei a ser chamada de escrava por um colega de classe. Deixou marcas, doeu obviamente. Cada uma dessas marcas que tive me fazem lutar para que as pessoas não passem pela mesma coisa. Luto para que essas pessoas não sofram o racismo dentro da escola, principalmente crianças. O secretário municipal provavelmente não convive tão próximo, talvez porque tenha assumido há pouco tempo. É meio estranho ele fazer essa afirmação (de que não há racismo), já que acontece tanta discriminação de alunos,  professores e profissionais da rede municipal. Acho essa declaração meio hipócrita, até porque o racismo existe há muito tempo dentro das escolas”, ensina Laís.

O outro lado

De acordo com a Secretaria municipal de Educação, Esportes e Lazer, a rede de ensino da prefeitura do Rio tem mais de 40 mil professores e 20 mil funcionários, a maioria, negra, e 650 mil alunos, “de todos os lugares  do mundo, refugiados do Congo, de Angola, África do Sul, Haiti, Togo”. A assessoria de imprensa da pasta enviou, por e-mail, uma carta intitulada “Aqui é um lugar de paz”, escrita pelo secretário Cesar Benjamin em maio, durante uma campanha contra a violência, na qual frisa: “Queremos uma escola sem violência, sem humilhações, sem racismo, sem preconceitos, sem drogas, em que todos se sintam bem”.

A assessoria destacou ainda o programa “Orquestra nas Escolas”, que pretende formar 80 mil estudantes de diversos bairros e comunidades da cidade até 2020. “Acabamos de fazer a estreia de uma Orquestra Sinfônica, com 300 alunos de todas as cores”, diz a nota. Por fim, acrescenta que o programa de teatro “A escola fertiliza a cena da cidade”, cuja estreia aconteceu no Teatro Ipanema, tem “a maioria de atores, negros, jovens talentosas estrelas de escolas municipais da Rocinha, da Cidade de Deus e do Complexo do Lins”.

No entanto, as duas únicas perguntas enviadas pelo #Colabora ao e-mail do secretário não foram respondidas por ele, que também foi informado sobre os casos de racismo apontados nesta reportagem. Após quatro dias de insistência, as repostas continuam em branco para as seguintes questões: “Numa entrevista, o senhor disse que não havia discriminação racial na rede municipal de Educação. Após a leitura desses casos, o senhor reconhece que há racismo, ainda que o senhor desconheça, ou acredita que os relatos das vítimas são apenas ‘histeria racial’?”; “Como secretário de Educação que acredita que o racismo deve ser tratado como burrice e crime, o senhor pretende tomar ações educativas e punitivas para evitar o preconceito racial na rede municipal? Quais?”

A assessoria de Benjamin informou que seria impossível atender a reportagem, pois o secretário estava “ocupadíssimo com matrícula para 2018 e com a formação do time de professores alfabetizadores. Nos perdoe”.

Lauro Neto

Carioca, mas cidadão do mundo. De carona na boleia de um caminhão ou na classe executiva de um voo rumo ao Qatar, sempre de malas prontas. Na cobertura de um tiroteio na cracolândia do Jacarezinho ou entrevistando Scarlett Johansson num hotel 5 estrelas em Los Angeles, a mesma dedicação. Curioso por natureza, sempre atrás de uma boa história para contar. Jornalista formado na UFRJ e no Colégio Santo Inácio. Em 11 anos de jornal O Globo, colaborou com quase todas as editorias. Destaque para a área de educação, em que ganhou o Prêmio Estácio em 2013 e 2015. Foi colunista do Panorama Esportivo e cobriu a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016.

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2 comentários “Racismo faz escola, mas secretário prefere ignorar

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