A crise de um projeto chamado Uerj

Estudantes protestam contra a falta de condições para o funcionamento da UERJ. Foto Alessandro Pereira da Silva/Citizenside

Esqueletos do passado de desigualdade voltam a assombrar a universidade

Por Luiz Antonio Simas | ODS 4 • Publicada em 6 de abril de 2017 - 18:36 • Atualizada em 10 de abril de 2017 - 13:09

Estudantes protestam contra a falta de condições para o funcionamento da UERJ. Foto Alessandro Pereira da Silva/Citizenside
Estudantes protestam contra a falta de condições para o funcionamento da UERJ. Foto Alessandro Pereira da Silva/Citizenside
Estudantes protestam contra a falta de condições para o funcionamento da Uerj. Foto: Alessandro Pereira da Silva/Citizenside

O governador do Rio de Janeiro, Luís Fernando Pezão, ameaçou cortar em 30 % os salários – já atrasados – dos servidores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), argumentando que eles não querem trabalhar. Os docentes contestaram, alegam que não estão em greve. Simplesmente não têm condições de retomar as atividades em virtude da precarização da segurança, dos elevadores e da limpeza, dentre outros problemas. A reitoria da instituição promete retomar as atividades, na próxima segunda-feira, dia 10 de abril, desde que a universidade passe a ter condições mínimas de funcionamento.

A Uerj poderia ser um símbolo das políticas higienistas de exclusão social que caracterizaram parte da história do Rio. No entanto, foi a primeira universidade do país a adotar, em 2003, um sistema de cotas

O drama da Uerj, inserido em um contexto maior de colapso da administração pública do Estado do Rio, guarda notável ligação com a história da construção do campus principal da universidade.  Na década de 1930, no local onde hoje está erguido o pavilhão da Uerj, começou a ser construído o prédio do Hospital das Clínicas da Universidade do Brasil. O projeto desandou e o que restou da obra foi o esqueleto incompleto do edifício.

Logo após a construção do estádio do Maracanã, projetado para a Copa do Mundo de 1950, o terreno onde ficava o esqueleto do hospital foi ocupado. Em torno dele, barracos começaram a surgir, chegando às margens do Rio Joana, onde casebres foram erguidos sobre palafitas. O edifício incompleto acabou também servindo como moradia popular. A chamada Favela do Esqueleto se transformou, em curto espaço de tempo, em uma das maiores da cidade.

O prédio da Uerj, construído onde existiu uma favela: passado e presente interligados. Foto: Márcio Menasce

No início da década de 1960, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, iniciou um programa de remoção de favelas e expulsão dos moradores. Além do Esqueleto, foram expulsas no mesmo contexto comunidades como as de Maria Angu, na Zona da Leopoldina, e do Morro do Pasmado, em Botafogo.

A maior parte dos moradores do Esqueleto foi deslocada para a então recém-criada Vila Kennedy, em Bangu. A comunidade foi erguida com o auxílio de capital norte-americano do plano da Aliança Para o Progresso, que visava estreitar os laços dos EUA com a América Latina nos tempos da Guerra Fria.

No lugar da Favela do Esqueleto foi construído o campus da Uerj, instituição criada na década de 1950 como Universidade do Distrito Federal e posteriormente conhecida como Universidade do Rio de Janeiro e Universidade da Guanabara.

O campus feito após a remoção do Esqueleto poderia ter transformado a Uerj em um símbolo das políticas higienistas de exclusão social que caracterizaram parte da história do Rio de Janeiro republicano. Nadando, porém, contra a corrente que auxiliou a sua criação, a Uerj foi a primeira universidade do Brasil a adotar, em 2003, um sistema de cotas, apostando em ações afirmativas para a inclusão de estudantes da rede pública, negros, indígenas e filhos de agentes de segurança pública mortos ou fisicamente incapacitados em virtude do serviço.

É como se, de certa forma, o perfil inclusivo que a Uerj adotou nos últimos anos tenha promovido a simbólica reconciliação entre as gentes expulsas do Esqueleto e o espaço da universidade. Além da produção acadêmica de excelência, o pioneirismo das ações afirmativas, o enraizamento em uma zona da cidade fora do cartão postal e o desenvolvimento de estudos de referência em temas caros ao imaginário afetivo do carioca (como os estudos de ponta sobre futebol, carnaval e religiosidades afro-brasileiras, por exemplo), fez da Uerj uma universidade integrada com a cidade e suas pessoas.

A crise da instituição diz muito, assim como a remoção da Favela do Esqueleto, sobre as contradições que envolvem a disputa entre a cidade popular, de tantas pequenas Áfricas, e aquela que, ao se mirar no espelho, consegue ver apenas a embaçada imagem do convescote de seus saqueadores – de guardanapos na cabeça – em uma delirante noite européia.  Em certo sentido, a Uerj representa, como o Esqueleto representou um dia, o Rio de Janeiro que os confrades do rega-bofe europeu não concebem que possa ter voz.

Protestos contra o governador que ameaça cortar 30% dos salários que já estão atrasados. Foto Alessandro Pereira da Silva/Citizenside
Protestos contra o governador que ameaça cortar 30% dos salários que já estão atrasados. Foto Alessandro Pereira da Silva/Citizenside

Luiz Antonio Simas

É historiador, professor e escritor. Foi colunista do jornal O Dia e jurado do Estandarte de Ouro, prêmio carnavalesco do jornal O Globo. Tem diversos livros lançados sobre cultura popular, carnaval, samba e Rio de Janeiro. Recebeu, pelo Dicionário da História Social do Samba, escrito com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção/2016.

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