A vitória dos doces no Cosme e Damião

Cosme e Damião: Foto Flickr.com

Tentativa de 'gourmetizar' os saquinhos em homenagem aos santos gêmeos fracassa diante da tradição de guloseimas como maria mole e cocô de rato

Por Clarissa Monteagudo | ODS 9 • Publicada em 26 de setembro de 2017 - 19:31 • Atualizada em 27 de setembro de 2018 - 15:46

Cosme e Damião: Foto Flickr.com
Cosme e Damião: ideia de substituir os tradicionais doces distribuídos em saquinhos por guloseimas mais saudáveis é recebida com saraivada de críticas. Foto: Flickr.com
Cosme e Damião: ideia de substituir os tradicionais doces distribuídos em saquinhos por guloseimas mais saudáveis é recebida com saraivada de críticas. Foto: Flickr.com

Nas ruas do Rio, a maratona é de açúcar e vence quem acumula mais calorias na corrida por doces. Mas, na internet, quanta diferença. Os saquinhos de São Cosme e São Damião “versão gourmet” azedaram os ânimos dos devotos mais tradicionais e produziram polêmica salgada nas redes. Em vez de paçoca e maria mole, biscoito de arroz e balinhas de algas marinhas. No lugar do papel, embalagens metalizadas. E há quem proponha até brigadeiro de biomassa de banana verde para adoçar a festa das crianças, comemorada neste dia 27.

Sou comerciante, busco o lucro, mas fiz o kit com a melhor das intenções. Disseram que era terceirização da promessa. Mas isso não importa se a pessoa doa com o coração. Em um mundo em que todos estão correndo, qual o problema de um saquinho comprado pronto?

Dono de uma empresa especializada em brindes, Julio Cesar Saroldi, de 31 anos, apostou em um novo kit para a festa: oito doces dentro do saquinho de plástico cromado por R$ 8,99, com pagamento em três vezes sem juros e desconto de 10% em dinheiro. Até segunda (25), não havia vendido um sequer. Em compensação, a postagem rendeu 13 mil visualizações na página de sua empresa. E alguma dor de cabeça. “Fui mal-interpretado, me tacharam de várias coisas, debocharam”, lamenta. “Sou comerciante, busco o lucro, mas fiz o kit com a melhor das intenções. Disseram que era terceirização da promessa. Mas isso não importa se a pessoa doa com o coração. Em um mundo em que todos estão correndo, qual o problema de um saquinho comprado pronto?”, prega ele.

Criador da página Suburbano da Depressão, um sucesso nas redes com cerca de 6 milhões de interações com usuários por mês, Vitor Almeida admite que a repercussão de seu post criticando os saquinhos metalizados lhe pesou na consciência. “Não quis atacar o empreendimento das pessoas, uma empresa pequena que estava tentando emplacar o kit. A gente sabe que o comércio acompanha a fé. Isso a gente vê no Mercadão. Mas, nas lojas, estão sendo vendidos os apetrechos, não os ritos”, pondera. A publicação sobre a versão gourmet das guloseimas proposta por Julio alcançou 329.616 mil pessoas em uma semana. “A história mostra que a cozinha é o local da conversa, da interação social, que está presente na montagem do saquinho de Cosme e Damião. Estar perto, batendo papo, é muito prazeroso. No saquinho pronto, isso se perde”, defende o influenciador digital.

A cada dez crianças, três estão obesas ou acima do peso. Essa sugestão do saquinho (com iguarias menos calóricas) não é para virar uma confusão. Quem quiser comer paçoca, maria mole, coma. Não entro nessa discussão radical. O que fiz foi algo simples, oferecer opções

Outra postagem que quase acabou em guerra santa foi a sugestão do saquinho de Cosme e Damião saudável, com frutas secas, pipoca de canjica, barra de cereal, balinha de algas, entre outras iguarias light. A publicação viralizou nas últimas semanas e causou uma romaria de críticas. “Isso é Halloween”, “Erê (espírito de criança) não baixa no terreiro para comer alga”, “Gourmetizaram até os santos? Cadê os doces que ficam grudados no dente?”, “Eu me recuso a pegar bala com um discípulo de Bela Gil”, reclamaram alguns internautas.

Baianas da Mangueira fazem homenagem aos santos gêmeos, no desfile de 2017. Foto: Leo Queiroz/divulgação
Baianas da Mangueira fazem homenagem aos santos gêmeos, no desfile de 2017. Foto: Leo Queiroz/divulgação

A nutricionista Gabriela Kapim, que deu dicas para uma festa menos calórica em matéria publicada, ano passado, no extinto site Ego, foge do bate-boca. “Se fosse um saquinho só tudo bem, mas as crianças recebem dez. Eu ganhava doces na minha infância, no Humaitá. A festa para mim é cultural e quis apresentar um cardápio com mais sabedoria nas escolhas. Não levanto bandeiras radicais, só apresentei opções”, defende-se, citando problema crescente no Brasil. “A cada dez crianças, três estão obesas ou acima do peso. Essa sugestão do saquinho não é para virar uma confusão. Quem quiser comer paçoca, maria mole, coma. Não entro nessa discussão radical. O que fiz foi algo simples, oferecer opções”.

Autora do blog Transborde Saúde, a nutricionista Carolina Xavier também publicou dicas para uma celebração de Cosme e Damião mais saudável, com doces de abóbora, balas de coco feitas em casa e até uma receita de brigadeiro de biomassa de banana verde, substituta do calórico leite condensado. Não prestou. “Fiquei sabendo da polêmica no Instagram e acho que a gente deve ter bom senso. Se a criança ganhou um saco de Cosme e Damião, não é para jogar fora. Mas os pais podem incentivar o preparo do doce caseiro”, argumenta. “Isso aumenta a consciência em relação à diferença do produto industrializado e o caseiro. É válida a opção também para crianças com diabetes e obesidade em tratamento que não querem ficar de fora da comemoração. Não é para ser radical, acabar com a cultura. A criança vai comer na festa, no evento social. Quanto mais proibir, pior. Não adianta fazer terrorismo nutricional, mas, sim, oferecer opções para uma vida mais saudável”.

É compreensível que aconteçam essas inovações dentro do discurso da urgência, da falta de tempo, da saúde. Mas são simulacros que ocupam o espaço da vivência do ritual. Torço para dar errado, mas a dinâmica do tempo é essa

Já o escritor e historiador Luiz Antonio Simas confessa que torce para todas as inovações “darem errado”. Ele cita a máxima do compositor Beto Sem Braço, “O que espanta miséria é festa”, defendendo a importância de rituais como o de Cosme e Damião. Para Simas, a celebração aplaca a “miséria existencial” e é fundamental, principalmente, para equilibrar a balança da vida. O pesquisador defende que, no dia da celebração, sejam servidas as guloseimas mais açucaradas e gordurosas possíveis. “É compreensível que aconteçam essas inovações dentro do discurso da urgência, da falta de tempo, da saúde. Mas são simulacros que ocupam o espaço da vivência do ritual. Torço para dar errado, mas a dinâmica do tempo é essa”, reconhece. “O ato de fazer o saquinho na família ou na casa de santo estabelecia uma linha de montagem. Um era responsável pelo suspiro, outro pela maria mole, havia sociabilidade. Em tempos de urgências, isso vai se redimensionando. Há um processo de desencanto, mas faz parte. Não adianta se refugiar no bunker da tradição e não pensar no diálogo com o tempo”.

É uma grande futilidade. Quem tem sentido religioso e segue tradições não vai dar bola para isso. É um modismo consumista, tá certo?

Simas explica que a opulência da festa religiosa tem suas raízes do outro lado do Atlântico. “É uma dinâmica de herança portuguesa celebrar comendo. A doceria em Portugal é importante em várias festas do cristianismo popular, como nas celebrações de São Gonçalo do Amarante. Agora, se pensar, há 18, 20 anos, o costume de dar doces tinha caído muito e hoje ganha vigor”, anima-se ele. “Cosme e Damião e São Jorge foram incorporados ao imaginário pop. Existe um simulacro ocupando o espaço da vivência”.

O calendário dedicado aos santos mártires é tão fértil em datas e histórias quanto suas celebrações. Para a Igreja Ortodoxa Grega, seu dia é 1º de julho. Já a Igreja Cristã Ortodoxa comemora a vida dos santos que morreram por volta de 300 d.C. em 1º de novembro. Na Igreja Católica, historicamente, a festa sempre foi realizada dia 27, hoje dedicado a São Vicente de Paulo. Em 1969, com a reforma litúrgica, passou-se a comemoração para o dia 26, mas nas ruas do Rio de Janeiro, o povo continua realizando a distribuição de doces para os santos irmãos, médicos e missionários na data tradicional.

Saquinhos de Cosme e Damião recheados de doces: vitória da tradição. Foto: Reprodução
Saquinhos de Cosme e Damião recheados de doces: vitória da tradição. Foto: Reprodução

Também dia 27 de setembro, há rituais festivos nos terreiros de umbanda e candomblé. No sincretismo, São Cosme e Damião correspondem aos Ibejis, protagonistas de várias lendas da tradição africana. Numa delas, aparecem como príncipes gêmeos que traziam sorte para o reino e em troca só pediam doces, balas e brinquedos. Quando um deles morreu em uma cachoeira, o outro pediu para também ir para o céu. E assim se tornaram orixás cultuados também no Brasil, como filhos de Xangô e Iansã.

Compositor, escritor e pesquisador das culturas africanas, Nei Lopes não quis nem estender conversa sobre a polêmica nas redes sociais. “É uma grande futilidade. Quem tem sentido religioso e segue tradições não vai dar bola para isso. É um modismo consumista, tá certo?” Certo, mestre. Mas, em Cascadura, Julio Cesar Saroldi ainda insiste em ver a moda pegar. “Ano que vem, vou preparar um saquinho metalizado para a festa de São Jorge. Só não tenho em mente o que vou fazer”, confessa ele, com garra de comerciante e esperança de devoto.

Clarissa Monteagudo

É jornalista com 16 anos de profissão dedicados à pesquisa e divulgação da cultura popular do Rio de Janeiro. Trabalhou em veículos de imprensa como O Dia, TV Record e EXTRA, onde ganhou prêmios como o Excelência Jornalística, da Sociedade Interamericana de Imprensa, e Camélia da Liberdade, pela série de trabalhos contra intolerância religiosa. Formada em Comunicação Social pela UFRJ, trabalha em assessoria de projetos na Secretaria de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos e desenvolve o projeto Histórias, oficinas de construção de perfis com objetivo de romper a invisibilidade social de populações em situação de vulnerabilidade.

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3 comentários “A vitória dos doces no Cosme e Damião

  1. Cláudia Elaine Feitosa disse:

    Desde criança não tenho o hábito de correr atrás dos deliciosos saquinhos de doces,não por preconceito ou questões religiosas,infelizmente devido ao diabetes que me persegue desde cedo. Apesar disso sou contra a sandices de oferecerem outras coisas que não sejam os doces tradicionais as nossas crianças.
    Fiquei triste por ver uma tradição tão brasileira se extinguindo em nome de uma crise sócio econômica que atravessamos ou de uma alimentação mais saudável, o fato são cada vez menos adultos dispostos a manter nossa tradição e cultura e menos crianças correndo felizes pelas ruas com saquinhos mágicos nas mãos.

  2. Deise Borges Landim disse:

    Achei excelente a idéia de doces artesanais. Irão beneficiar crianças com diabetes, obesas e o melhor de tudo isso incentivar aos pais a falar sobre uma alimentação mais saudável e oferecer opções para uma vida melhor.
    O Sol nasceu para todos .
    Não é questão de modismo e sim de saúde!
    Quem quer o bem de seus filhos, que comecem agora as mudanças alimentares, com uma alimentação saudável
    longe de açúcares e comidas industrializadas com muito sódio e gorduras que não trazem benefícios alguns a saúde.
    Excelente matéria Clarissa Monteagudo​​.
    Deise Borges Landim

  3. victoria disse:

    Olá, gostaria de saber se essa imagem dos doces e São cosme e Damião é de domínio público para uso livre. Se nao souber e puder compartilhar o link dela por favor…

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