Folia na fronteira

A Unidos da Ilha do Marduque na pista: campeã de 2018. Foto de Elias Pizarro (Bah Entretenimento)

Uruguaiana realiza espetáculo com artistas importados do Rio, e totalmente bancado pela iniciativa privada

Por Fred Soares | ODS 9 • Publicada em 14 de março de 2018 - 09:52 • Atualizada em 14 de março de 2018 - 16:02

A Unidos da Ilha do Marduque na pista: campeã de 2018. Foto de Elias Pizarro (Bah Entretenimento)
A Unidos da Ilha do Marduque na pista: campeã de 2018. Foto de Elias Pizarro /Bah Entretenimento
A Unidos da Ilha do Marduque na pista: campeã de 2018. Foto de Elias Pizarro /Bah Entretenimento

O que o fim da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial tem a ver com um desfile de escola de samba realizado anualmente, semanas após a folia momesca oficial, na fronteira do Brasil com a Argentina? Aparentemente, os dois temas não se relacionam. Puro engano. A mistura de um fato histórico com a maior festa do samba gerou um surpreendente espetáculo da cultura nacional: o Carnaval de Uruguaiana, cidade do oeste gaúcho, vizinha a Paso de los Libres.

“O carnaval de Uruguaiana é um milagre brasileiro”, define o radialista, pesquisador, compositor e violonista Chico Alves, referência cultural da cidade, tanto no samba quanto na música nativista. De fato – porque a festa nasce da guerra. O samba em Uruguaiana surgiu a partir da determinação do então presidente Getúlio Vargas, de reforço militar nas fronteiras brasileiras após a vitória dos aliados na Segunda Guerra. Grande parte dos fuzileiros navais destacados para a missão em Uruguaiana saiu do Rio.

Além da disciplina militar, os soldados levaram a ginga, o pandeiro, o surdo e o tamborim. “Aí se explica a enorme influência carioca no nosso Carnaval, algo que se mantém até hoje. Os fundamentos do samba e do jeito de se fazer escola de samba vieram do Rio de Janeiro, e aqui ganharam traços locais. Os fuzileiros primeiro criaram um bloco chamado Falsa Baiana, que culminou com a criação da primeira escola, a Filhos do Mar”.

A Avenida Presidente Vargas (que outro nome poderia ter?) tornou-se o endereço da festa. Uma avenida central que, no ponto onde fica o recuo da bateria, está o obelisco que registra o local da rendição oficial das tropas
derrotadas pelo Brasil na Guerra do Paraguai. Lá, novas agremiações surgiram e, com elas, a rivalidade – bem ao estilo do Gre-Nal, no futebol.

No samba, esse protagonismo cabe aos Rouxinóis e à Unidos da Cova da Onça, atualmente as duas maiores campeãs da cidade. “Essa rivalidade começa quando integrantes da família Matias de Abreu deixam Os Rouxinóis e fundam a Cova da Onça em 1970”, explica o médico José Carlos Zaccaro, presidente da Unidos da Cova da Onça. “E a coisa é séria. Tanto que costumo dizer que não faço Carnaval para ser campeão, mas para chegar na frente dos Rouxinóis”.

Ito Melodia: apresentação eletrizante na Cova da Onça. Foto de Ulisses Duarte
Ito Melodia: apresentação eletrizante na Cova da Onça. Foto de Ulisses Duarte

O desfile das escolas de samba da cidade pampeira era mais um entre dezenas que acontecem no país, à sombra do megaespetáculo da Sapucaí nos dias oficiais da folia. Até que aconteceu fato inusitado em 2004: a Justiça proibiu ensaios no período pré-Carnaval, decisão fatal para as escolas, que tinham na arrecadação das quadras a solitária onte de recursos. O ano virou e as agremiações se viram no fundo do poço. Não haveria tempo hábil para pôr o carnaval da rua, embora àquela altura o Judiciário já tivesse liberado os ensaios.

Da caneta do então prefeito Sanchotene Felice veio a decisão. “Havia duas possibilidades: não ter o Carnaval ou adiá-lo. Adotei a segunda. Seria uma grande insensibilidade simplesmente virarmos as costas para as escolas de samba”, constata o político. Sem que ninguém pudesse prever, começava a grande revolução do Carnaval da fronteira. Independentemente de condição social, sexo, idade, houve um clamor generalizado a favor da festa. O amor pelas escolas ganhou as ruas da cidade, sentimento que, na hora do desfile, ganhava componente peculiar: o formato, em que cada agremiação desfilava duas vezes de forma competitiva, em noites diferentes; ou seja, o fracasso de uma apresentação pode ser compensado pela glória na segunda chance. E vice-versa.

Longe da sombra do Rio de Janeiro, as escolas ousaram e passaram a convidar profissionais que brilhavam na Sapucaí. Desembarcaram na cidade ídolos como Neguinho da Beija-Flor, Selminha Sorriso e Dominguinhos
do Estácio. “Essa integração entre as duas cidades fez e faz um enorme bem a Uruguaiana. E não tem jeito: quem vem aqui se apaixona”, atesta o carnavalesco Severo Luzardo, da carioca União da Ilha, nascido em Uruguaiana e o maior vencedor dos concursos na cidade.

Essa espécie de êxodo cultural tornou-se uma tradição. Em 2018, as seis escolas do primeiro grupo tiveram seus sambas cantados por artistas do Rio: Leozinho Nunes (São Clemente) na Apoteose do Samba; Emerson Dias (Grande Rio) na Imperadores do Sol; Tinga (Tijuca), na Bambas da Alegria; Wantuir (ex-Portela), nos Rouxinóis;
Ito Melodia (União da Ilha), na Cova da Onça; e Igor Sorriso (Vila Isabel), na Unidos da Ilha do Marduque. Há ainda mestres-salas, porta-bandeiras, diretores de Carnaval…

Todos com algo em comum: um carinho por Uruguaiana e suas raízes cariocas. “A primeira vez em que desfilei aqui, vi aquele mar de gente vibrando, cantando, chorando… Aquilo mexeu demais comigo. Lembrei logo da minha juventude quando isso era uma coisa normal no Rio de Janeiro, mas que ficou no passado. Costumo dizer que agora também sou cidadão de Uruguaiana e sempre irei ao Carnaval na cidade, mesmo que não desfile”, elogia o mestre-sala Sidclei, do Salgueiro, que em Uruguaiana oferece sua arte à Cova da Onça.

A emoção da cidade realmente toca fundo o coração dos cariocas. “Nunca deixei de sentir o termômetro da emoção e da paixão pelo Carnaval de Uruguaiana, algo que renova, redimensiona e até faz surgir outra pulsação no meu entendimento de Carnaval”, reconhece Junior Schall, ex-Portela, Mangueira e Vila, e hoje nos Rouxinóis.

Rei Momo, rainhas e princesas do Carnaval de Uruguaiana. Foto de Elias Pizarro/Bah Entretenimento
Rei Momo, rainhas e princesas do Carnaval de Uruguaiana. Foto de Elias Pizarro/Bah Entretenimento

Todo esse crescimento sofreu um revés em 2017. Os bambas de Uruguaiana, assim como os de outras cidades do Brasil, enfrentaram o corte da subvenção dada pela prefeitura, o que transformou num suplício a produção do desfile. Diferentemente de outros lugares – como o Rio de Janeiro -, as escolas engoliram o choro e foram à luta. Associaram-se a uma produtora de eventos, que assumiu todo o ônus, comprometendo-se a pagar cachê a cada uma das integrantes do primeiro (R$ 150 mil cada) e do segundo grupos (R$ 40 mil). Dos cofres municipais, não saiu um só tostão.

O sucesso foi absoluto, e o contrato confirmado por mais dois anos, com aumentos sucessivos nos cachês e
possibilidade de exploração das marcas. “A cidade conseguiu mostrar que há soluções para se pôr o carnaval da rua sem depender do governo. Sobrou até para a prefeitura, que pode investir em outras ações sociais ligadas à festa, como oficinas de arte, de percussão…”, elogia o atual prefeito, Ronnie Mello (PP).

No desfecho do espetáculo de 2018, a cidade festejou a vitória da Unidos da Ilha do Marduque que, com o enredo “Liberté, Egalité et Fraternité – O povo conta sua história”, apostou numa bem elaborada crítica sociopolítica. E cálculos preliminares dão conta de que os três dias de folia em Uruguaiana podem render R$ 6 milhões à cidade de 140 mil habitantes, que arrecada anualmente R$ 240 milhões. “No nosso cálculo, a gente leva em conta só o turismo do Carnaval. Mas ainda há o aumento da geração de emprego nos meses que antecedem o evento e a economia informal, que certamente elevam esses valores”, contabiliza a presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Uruguaiana, Luciane Lopes.

Sucesso no samba, na Avenida e no planejamento, a aprazível cidade gaúcha confirma o verso do poeta e compositor local João Chagas Leite: “Quem segue o rastro do sol sempre chega a Uruguaiana”. Quem sabe lá também não esteja o embrião da solução de outros Carnavais do Brasil.

Fred Soares

É jornalista com mais de 20 anos de experiência nas redações do Jornal dos Sports, Sistema Globo de Rádio, Super Rádio Tupi, O Globo, Extra, Sportv e Esporte Interativo. Atualmente, é supervisor de reportagens especiais do Esporte Interativo. É um eterno batalhador pela cultura popular, principalmente o carnaval. Já comentou desfiles de escolas de samba para as rádios Arquibancada, Globo, Gaúcha e Tupi. E-mail: fredaosoares@outlook.com

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