É marchinha, é apropriação… É carnaval

Os músicos do Ocupa Carnaval em ação: o cortejo começou em 2014 (Foto de divulgação)

Bloco faz paródias das canções carnavalescas para criticar políticos e discutir questões sociais

Por Bibiana Maia | ODS 9 • Publicada em 22 de fevereiro de 2017 - 08:43 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2017 - 16:04

Os músicos do Ocupa Carnaval em ação: o cortejo começou em 2014 (Foto de divulgação)
Os músicos do Ocupa Carnaval em ação: o cortejo começou em 2014 (Foto de divulgação)
Os músicos do Ocupa Carnaval em ação: o cortejo começou em 2014 (Foto de divulgação)

Dois debates pegaram fogo neste início de 2017: marchinhas e apropriação cultural. Imagina só juntar as duas coisas? É treta virtual? Não, é diversão, é carnaval. Uma paródia de “Cachaça” (aquela do “Se você pensa que cachaça é água…”) empodera mulheres e ainda faz crítica política: “Se você pensa que sou recatada/Eu não sou recatada, não/Me acabo ao som do repinique/Não aturo abuso de machão…” Outra, ao som de “Allah-la Ô” (Mas que calor, ô ô ô ô ô ô), critica a falência do Estado do Rio: “Olha o caô, ô, ô/Governador, ô, ô/Deu isenção pras empresas mais bizarras/Deixou o servidor vivendo de gambiarra/Olha o caô, ô, ô/Governador, ô, ô”. Tudo obra do coletivo Ocupa Carnaval, nascido em 2013, mesmo ano em que milhares foram às ruas em passeatas.

Desfile mesmo o bloco da paródia só fez em 2014. Este ano, em seu quarto cortejo, vai levar dois enredos: Caçadores de Pé Grande, uma crítica ao governador Luiz Fernando Pezão e à crise no Estado do Rio, e uma homenagem aos cem anos da Revolução Russa, logo após o carnaval.

“O Ocupa é uma frente que traz ao carnaval pautas dos movimentos sociais sem perder a linguagem da irreverência, fazendo paródias das marchinhas. Começamos com a ‘Cabralhada’ e a ‘Copa que pariu‘ e já tivemos também a ‘Paespalhada’. Em 2016, nossos enredos foram o ‘Camelato” e a ‘OlimPiada’, explica a compositora Manuela Trindade, uma das organizadoras.

Fazer paródias não é uma novidade. Nos anos 1930 e 1940 elas já existiam, às vezes criadas pelos autores. Tivemos espaço para fazer novamente, sem ter constrangimento de compor uma marchinha feminista, por exemplo

Longe de ser um bloco tradicional, o Ocupa faz, a cada ano, reuniões abertas na rua para que as pessoas ajudem a construir as paródias e (des) organizar o cortejo. São criadas comissões diferentes, como por exemplo para fazer as letras. A primeira reunião, este ano, foi na praça São Salvador, em Laranjeiras, e a segunda na Lapa. Os músicos são amigos e quem souber tocar marchinhas pode chegar no dia com seu instrumento.

“As marchinhas se acumulam e tem algumas paródias que ninguém sabe bem quem fez. Na primeira reunião, em 2013, tivemos mais de 200 pessoas. A cada ano construímos o repertório, atualizando letras, mantendo e tirando músicas. No ano passado, “Ei você aí” tinha uma paródia para o Eduardo Cunha, este ano é sobre Temer”, diz Manuela. 

 Na paródia de Bandeira Branca, o prefeito Marcelo Crivella e Pezão são lembrados ao lado do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.  Não só os políticos brasileiros são cutucados. Sempre há canções que reverberam reivindicações de movimentos sociais. Manuela acredita que o ano 2013 teve alguma influência no resgate da ironia das marchinhas sobre questões da sociedade.

Ninguém estava tentando obrigar outros blocos a tirar as marchinhas. Mas tudo que se produz na sociedade tem reflexo nas artes. Não é um debate fácil, porque elas estão associadas a um prazer e a uma tradição, mas não se pode ignorar o racismo e o machismo.

“Houve uma certa tranquilidade a partir daí para fazer mais críticas, mas compor paródias não é uma novidade. Nos anos 1930 e 1940 elas já existiam, às vezes criadas pelos autores. Tivemos espaço para fazer novamente, sem ter constrangimento de compor uma marchinha feminista, por exemplo. O carnaval tem uma cultura de permissividade que é vista como empolgação, então é importante pegar essas pautas e falar sobre isso com irreverência”, opina a compositora.

Ambulantes do desfile do Ocupa Carnaval: protesto real (Foto de divulgação)
Ambulantes do desfile do Ocupa Carnaval: protesto real (Foto de divulgação)

Em quase quatro anos de atividades, Manuela conta que o grupo não sofre repressões, apesar do teor político. A única situação adversa aconteceu em 2014, quando a Polícia Militar acompanhou em grande número o cortejo. “A gente teve uma verdadeira ala da PM. Os policiais chegaram com aquela cara sisuda, mas viram que era apenas um bloco de carnaval e fizeram um cordão”, lembra a organizadora.

Os desfiles são em locais do Centro do Rio, no fim do dia, para que as pessoas possam acompanhar após o trabalho. A opção por usar as melodias das marchinhas é também para facilitar o trabalho dos músicos e para que as pessoas aprendam rápido a cantar. Manuela conta que eles distribuem folhetos com as letras e usam um estandarte gigante com as estrofes. “Eventualmente, passa alguém criticando o bloco, mas dificilmente alguém fica indiferente. As pessoas se engajam de várias formas, mas muita gente canta junto e acompanha. No enredo do Camelato, que criticava a repressão do choque de ordem, tivemos uma comissão de frente de ambulantes com seus carrinhos e faixas, num protesto legítimo”.

Sobre a polêmica de retirar marchinhas como “O teu cabelo não nega”, a compositora acredita que a discussão deve ser apresentada de forma mais clara. “Ninguém estava tentando obrigar outros blocos a tirar as marchinhas. Mas tudo que se produz na sociedade tem reflexo nas artes. Não é um debate fácil, porque elas estão associadas a um prazer e a uma tradição, mas não se pode ignorar o racismo e o machismo. Isso não é privilégio das marchinhas, aparece no samba e no funk, que também têm letras questionáveis”.

O Ocupa Carnaval desfila nesta quinta-feira, dia 23, a partir das 17h, na Rua Uruguaiana, no Centro, e no dia 6 de março, domingo, em local e horário a definir.

Bibiana Maia

Jornalista formada pela PUC-Rio com MBA em Gestão de Negócios Sustentáveis pela UFF. Trabalhou no Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e nos jornais O Globo, Extra e Expresso. Atualmente é freelancer e colabora com reportagens para jornais e sites.

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