A mãe Águia abraça a cidade

blblblblbllblblblbllblblb

Portela oferece pré-vestibular, atendimento de saúde e curso de audiovisual, ratificando a vocação de agregadora comunitária

Por Luiz Antonio Simas | ODS 1ODS 11ODS 9 • Publicada em 4 de novembro de 2018 - 21:06 • Atualizada em 5 de novembro de 2018 - 02:30

blblblblbllblblblbllblblb
Grife do Carnaval carioca oferece pré-vestibular, atendimento de saúde e curso de audiovisual, ratificando a vocação de agregadora comunitária. Foto Divulgação
Grife do Carnaval carioca oferece pré-vestibular, atendimento de saúde e curso de audiovisual, ratificando a vocação de agregadora comunitária. Foto Ygor Lioi

A quadra da Portela, situada na Rua Clara Nunes, em Madureira, abriu cedo no dia 27 de outubro, sábado da véspera do segundo turno das eleições presidenciais. Cheguei pouco antes das 9h para dar a última aula de História do pré-vestibular social que a escola de samba organizou. A turma é composta por estudantes de idades variadas, vindos de diversos lugares do subúrbio carioca. Naquele dia, a emoção tomou conta dos organizadores do curso e dos alunos. Era o último encontro de preparação para as provas do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM.

Enquanto as aulas do pré-vestibular aconteciam em uma sala com boa estrutura, ao lado ocorriam aulas de dança abertas à comunidade. Uma das alunas de dança cigana é moradora de rua, me informou depois Hellen Mary Costa, diretora do Departamento de Projetos Sociais e Cidadania da agremiação.

A experiência da Portela – que abre seus portões o ano inteiro, e não apenas nas proximidades do Carnaval – estimula algumas reflexões sobre as escolas de samba e o papel que elas desempenharam e desempenham nas suas comunidades de origem

Além de dirigir os projetos, Hellen, que é dentista, estava trabalhando no consultório odontológico da escola, reinaugurado em 2017, e encontrou tempo ainda para mostrar a sala de leitura que em breve a Portela vai abrir. Os livros ficarão à disposição de quem chegar, para ler na quadra, levar para casa ou trocar por outro livro.

A escola ofereceu ainda, neste ano de 2018, um curso de audiovisual para a comunidade, o “Por Telas”. Ao final, os alunos realizaram três documentários: “Paulo Mais Benjamin de Oliveira do que da Portela: Influências e legados culturais de um sambista para a sociedade carioca”, de Ruan Lucena; “Um craque esquecido”, de Ygor Lioi; e “Procuram-se mulheres”, de Rozzi Brasil.

O Departamento Cultural da escola tem montado frequentemente exposições abertas ao público, no Centro de Memórias. Dentre outros eventos, o departamento ainda organiza o “Portela de Asas Abertas”, com roda de samba de terreiro e recital de poesias. O evento costuma encher a quadra com um público diferente daquele que habitualmente frequenta os ensaios para o carnaval; mais disposto a ouvir Bide e Marçal, Paulo, Rufino e Caetano, Monarco, e tantos compositores do samba carioca.

O fato é que a quadra da Portela, e também a sede da Portelinha, a antiga quadra, funcionam como espaços abertos para a comunidade de Madureira, Oswaldo Cruz, Campinho, Vaz Lobo, Cascadura, Bento Ribeiro, e outros bairros próximos do subúrbio. É um contraponto a diversas quadras de escolas de samba que poderiam ser aproveitadas com muito mais frequência como equipamentos culturais de ponta na cidade do Rio de Janeiro.

A experiência da Portela – que abre seus portões o ano inteiro, e não apenas nas proximidades do Carnaval – estimula algumas reflexões sobre as escolas de samba e o papel que elas desempenharam e desempenham nas suas comunidades de origem.

A quadra da Portela, e também a sede da Portelinha, a antiga quadra, funcionam como espaços abertos para a comunidade de Madureira, Oswaldo Cruz, Campinho, Vaz Lobo, Cascadura, Bento Ribeiro, e outros bairros próximos do subúrbio. Foto Igor Lioi
A quadra da Portela, e também a sede da Portelinha, a antiga quadra, funcionam como espaços abertos para a comunidade de Madureira, Oswaldo Cruz, Campinho, Vaz Lobo, Cascadura, Bento Ribeiro, e outros bairros próximos do subúrbio. Foto Ygor Lioi

A ancestralidade da enzima africana catalisou no Brasil, em um processo com inúmeros cruzamentos, o samba, os candomblés, as capoeiras, os jongos, as congadas, os moçambiques, etc. Todas as implicações dos quatro séculos de escravidão e da permanência do racismo transformaram a trágica experiência da diáspora africana em um empreendimento civilizatório de afirmação e invenção de redes associativas, sociabilidades, redefinição de identidades e culturas comunitárias, como alternativa ao horror e ao precário. Diversas manifestações culturais afro-brasileiras levaram ao centro da cena, como protagonistas, populações economicamente subalternas que, pela cultura, assumiram o protagonismo de suas próprias vidas.

As escolas de samba se inserem aí. Elas foram criadas, em larga medida, como instituições associativas de invenção, construção, dinamização e manutenção de identidades comunitárias, redefinidas no Brasil a partir da fragmentação que a diáspora impôs. Cada escola de samba construiu, dentro de um território de referências comuns, elementos próprios de identidade, através das características das baterias, dos sambas-enredo, dos sambas de terreiro, etc.

Em certo sentido, pode-se observar que o desenvolvimento das escolas de samba é cheio de lances, até concomitantes, de adesão, resistência, afago, porrada, confronto, negociação e adequação. As agremiações caminham lidando o tempo todo com o conflito entre o desejo de expressar suas tradições, concepções de mundo e bens simbólicos e a necessidade, para que esse desejo seja realizado, de atendimento às exigências de instâncias aparentemente fora do ambiente do samba: o poder instituído, a indústria turística, a mídia ou até mesmo o crime.

Com o passar do tempo, por inúmeras razões que escapam ao objetivo deste artigo, as escolas de samba foram perdendo o vigor comunitário e associativo que caracterizou suas origens. Cada vez mais inseridas na lógica do turismo e do entretenimento, as agremiações foram se desligando de suas características culturais mais profundas e perdendo a dimensão cotidiana que tinham como aglutinadoras da comunidade. Como costumo ressaltar com certa frequência, as escolas de samba desfilavam porque existiam. Em certo momento, passaram a existir porque desfilam.

A alternativa que a Portela escolheu durante a gestão do presidente Luís Carlos Magalhães – manter a quadra aberta com inúmeras atividades o ano inteiro – aponta para o futuro e, ao mesmo tempo, reverencia o passado. O sucesso das escolas de samba como peças de uma engrenagem que enxerga o carnaval pelo prisma apenas do evento turístico parece ter se esgotado. Os recentes problemas das agremiações com a prefeitura do Rio de Janeiro e a polêmica sobre a redução da subvenção pública para as escolas de samba, comprovam isso. O prefeito da cidade, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, admite não gostar da festa.

Desconectadas de suas comunidades, descoladas da vivência cotidiana da cidade, com relações estremecidas com o poder público, as escolas de samba parecem estar restritas às bolhas que acompanham com paixão o combalido Carnaval da avenida. Reconectar-se com a rua, com o dia-a-dia dos cariocas, em um momento de desalento em que a própria cidade parece perder os bens simbólicos que construíram os modos de ser das gentes do Rio de Janeiro, é questão de sobrevivência.

De asas abertas, a imagem da águia que enfeita a quadra portelense lembra a de uma mãe guerreira disposta a abraçar a cidade e seus moradores. Saí da quadra, depois da aula, com a convicção de que o Rio de Janeiro precisa das escolas de samba para não morrer de vez. As agremiações, por sua vez, precisam urgentemente, para continuar existindo, disputar as ruas, corpos, sonhos, anseios e esperanças daqueles que sempre enxergaram na maior aventura civilizatória do Rio de Janeiro – o samba – e nas escolas, o útero materno que se contrapõe aos porões dos tumbeiros de onde nossos civilizadores desembarcaram um dia.

Luiz Antonio Simas

É historiador, professor e escritor. Foi colunista do jornal O Dia e jurado do Estandarte de Ouro, prêmio carnavalesco do jornal O Globo. Tem diversos livros lançados sobre cultura popular, carnaval, samba e Rio de Janeiro. Recebeu, pelo Dicionário da História Social do Samba, escrito com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção/2016.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

2 comentários “A mãe Águia abraça a cidade

  1. Isabel Cristina da Silva Teixeira disse:

    Boa noite a todos nós sempre.
    As Culturas são necessárias e importantes para manter viva as ancestralidades principalmente no Rio de Janeiro.
    Graças a Deus que a Portela comunga com essa visão e todos que precisam, estão aproveitando de verdade.
    Salve Portela na pessoa do nosso Presidente Luiz Carlos Magalhães e diretorias.
    Salve as Culturas.
    Salve o Professor Luiz Antonio Simas que acredita e segue em frente educando .
    Salve a todos que participaram das aulas.
    Muito obrigada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *