Sai a tradição, entra a inovação

A Station F foi concebida pelo empresário Xavier Niel, conhecido por ter criado uma operadora de celular, a Free, que oferece pacotes a partir de 1 euro. Foto Patrick Tourneboeuf

O maior centro de economia criativa do mundo, acredite se quiser, está na França

Por Marlene Oliveira | ODS 12 • Publicada em 8 de janeiro de 2019 - 08:48 • Atualizada em 8 de janeiro de 2019 - 14:31

A Station F foi concebida pelo empresário Xavier Niel, conhecido por ter criado uma operadora de celular, a Free, que oferece pacotes a partir de 1 euro. Foto Patrick Tourneboeuf
A Station F foi concebida pelo empresário Xavier Niel, conhecido por ter criado uma operadora de celular, a Free, que oferece pacotes a partir de 1 euro. Foto Patrick Tourneboeu
A Station F foi concebida pelo empresário Xavier Niel, conhecido por ter criado uma operadora de celular, a Free, que oferece pacotes a partir de 1 euro. Foto Patrick Tourneboeuf

Você deve ter várias referências e imagens associadas à França, mas ser uma sociedade inovadora, provavelmente, não faz parte da lista. Quando o euro entrou em circulação em 2002, a moeda francesa era o franco francês, uma das mais antigas do mundo. O franco francês surgiu em 1360, no final da Idade Média, ou seja, ele ficou em circulação 642 anos! Depois de tantos séculos circulando, até hoje, alguns tickets de lojas ainda exibem o valor correspondente em francos para ajudar os mais idosos e os mais reticentes a se adaptar às mudanças e compreender o real valor da compra. Falando em real, a título de comparação, o Brasil teve 8 moedas a partir de 1942: cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real e real. Apesar de tantas moedas, faltou inovação, pelo menos, no que tange aos nomes.

Na Station F, a ideia é que o empreendedor possa ficar livre, dedicando 100% do seu tempo ao negócio. O chamado “foco”. Todo o aparato, informações, recursos e ferramentas para empreender estão acessíveis no mesmo campus: de impressoras 3D até assessoria jurídica

Na legislação francesa, algumas leis resistem ao tempo, mesmo com as transformações da sociedade. Um exemplo é o funcionamento das padarias. Uma lei de 1919, obriga as padarias, em várias regiões da França, a não vender pão, no mínimo, um dia por semana. Nada contra o pão, mas para conceder um dia de repouso semanal obrigatório para os padeiros. Numa época em que os negócios eram tocados pela própria família – muitos ainda o são, é verdade – e quando havia um único profissional a fazer o pão: ele, o padeiro. A França sem pão seria como o Brasil sem feijão. O resultado é que algumas padarias, que querem crescer e aumentar o efetivo, esbarram na tal lei e são multadas e obrigadas a não vender pão por um dia. O mais incrível é que elas estão liberadas para vender croissant e todos os outros delírios gastronômicos, menos ela: a famosa baguete, em todas as suas diferentes versões. Vai entender…

A seleção das 200 startups participantes é feita por um comitê formado por 100 empreendedores de 21 países. Foto Patrick Tourneboeuf
A seleção das 200 startups participantes é feita por um comitê formado por 100 empreendedores de 21 países. Foto Patrick Tourneboeuf

Já tive uma discussão com um motorista de táxi que quis me convencer que os franceses inventaram o carro “flex”. Eu respondi “tá bem”. Ele continuou insistindo. Até que falei do Brasil e, bom… deixa pra lá. Ele não me levou a sério.

Por isso tudo, meu olhar de desconfiança quando vi a imprensa local noticiar a inauguração da Station F, o maior polo de inovação do mundo, uma estrutura para receber mais de 1 mil startups. Inaugurada em julho de 2017, bastaram 4 meses para que todas as 3 mil estações de trabalho, que ocupam uma área de 34 mil m² de uma antiga estação de trem, já estivessem ocupadas.

A Station F foi concebida por um empresário que ficou conhecido por ter criado uma operadora de celular, a Free, que “libertou” os usuários das operadoras tradicionais, oferecendo pacotes a partir de 1 euro. Foi a revolução, como vocês podem imaginar. O nome dele: Xavier Niel, oitava maior fortuna na França em 2018, segundo o ranking da revista Forbes. Ele criou sua primeira empresa, aos 16 anos e para realizar o projeto da Station F  investiu € 250 milhões em recursos próprios.

Xavier acredita que já é hora da França se lançar em um novo modelo de negócios e não mais continuar restrita à economia de lazer e serviços. Segundo ele, os impostos, as leis do trabalho e a cultura, que não incentivam o risco e o erro, fizeram com que a França tivesse um dos menores números de startups na Europa – aí o Brexit pode dar um empurrãozinho na ambição francesa de ser tornar o centro da inovação na Europa.

Na Station F, a ideia é que o empreendedor possa ficar livre. Todo o aparato, está acessível no mesmo campus: de impressoras 3D até assessoria jurídica. Foto Pascal Otlingaus
Na Station F, a ideia é que o empreendedor possa ficar livre. Todo o aparato, está acessível no mesmo campus: de impressoras 3D até assessoria jurídica. Foto Pascal Otlingaus

Não é preciso ser homem, branco e ter um MBA para se tornar um empreendedor

A promessa de Xavier Niel é que na Station F o empreendedor possa ficar livre, dedicando 100% do seu tempo ao negócio. O chamado “foco”. Todo o aparato, informações, recursos e ferramentas para empreender estão acessíveis no mesmo campus: de impressoras 3D até assessoria jurídica. Isso sem falar de estar inserido numa atmosfera de permanente inovação, cercado de milhares de empreendedores e experts. Bota experts nisso: 24 projetos de startups são acompanhados por líderes da indústria: Amazon, Facebook, Microsoft, L’Oréal, entre outros. Até o ex-presidente, François Hollande, ao deixar o cargo, instalou na Station F o escritório da fundação que ele criou  «La France s’engage»  , uma organização de inovação social.

Tantas vantagens atraem uma massa de candidatos: 2.300 startups de 50 países se inscreveram para participar do Founders Programs, um programa aberto à startups em processo inicial que se beneficiam de todo o ambiente inovador do campus durante um ano. Aos selecionados, cada mesa na “startup zone” custa €195 por mês.

A seleção das 200 startups participantes é feita por um comitê formado por 100 empreendedores de 21 países. Dessas 200 selecionadas, boa notícia, 40% foram fundadas por mulheres. Além de impulsionar o empreendedorismo feminino, a Station F identificou um potencial de criação vindo de camadas menos favorecidas da sociedade e criou um programa chamado “Fighters“, lutadores. Durante um ano, os projetos selecionados desfrutam de custo zero para se instalar e contam com os mesmos recursos e acessos dos outros empreendedores.

Os resultados práticos começam a aparecer. De julho de 2017 a julho de 2018, houve um aumento de 15% no número de criação de empresas na França, segundo o INSEE – Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos.  Na visão de Xavier Niel, no entanto, a Station F sozinha não vai conseguir romper o paradigma do conservadorismo francês. Para ele, a França do futuro será feita pelos jovens e, para isso, é preciso, em paralelo, formar profissionais aptos para essa transformação da indústria. Para isso, ele criou uma escola, mas não uma escola como outra qualquer.

Cerca de 2.300 startups de 50 países se inscreveram para participar do Founders Programs, um programa aberto à startups em processo inicial. Foto Patrick Tourneboeuf
Cerca de 2.300 startups de 50 países se inscreveram para participar do Founders Programs, um programa aberto à startups em processo inicial. Foto Patrick Tourneboeuf

Bem-vindo à “42”

Uma escola sem professor e sem aulas poderia ser o sonho de milhares de estudantes. E, na verdade, é. Mais de 80 mil candidatos se inscreveram para o processo seletivo da “42”: a escola de programação gratuita fundada por Xavier Niel para formar os programadores do futuro. O nome “42” foi dado em alusão ao livro de ficção científica  “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, de Douglas Adams, onde um robô super inteligente desvenda o mistério da vida com um número: 42!

Mesmo sem ter um diploma no final do curso, a disputa por uma vaga é acirradíssima e o processo de seleção inclui 4 semanas na “piscina”. Não, a escola não forma programadores que nadam, mas é esse o nome do período em que o candidato tem que provar fôlego e disposição para jornadas de até 13 horas diárias para resolver problemas. Aprovado na piscina – só a prova final dura 8 horas – o aluno está apto a ingressar na “42”, para um curso que dura 2 anos.

David Adler, um brasileiro de 24 anos, que vive na França há 11 anos, passou recentemente pela “piscina” e foi aprovado. “Foi um mês de muita pressão e de jornadas que duravam até 13 horas, incluindo sábados e domingos”. David elogia o processo de aprendizado, que inclui o peer-to-peer, pedagogia na qual você aprende com colegas, e o project-based learning, método de aprendizado baseado na solução de um problema. Cabe ao aluno achar as soluções. “O processo de programação é criativo e evolutivo, não estático. Aqui, aprendemos a resolver problemas que, muitas vezes, ninguém conhece a solução. Recebemos os enunciados dos exercícios e cabe à cada um procurar as informações onde bem entender, incluindo os vizinhos da esquerda ou da direita.

Para ele, a única frustração nos métodos utilizados é que, muitas vezes, você sabe que errou, mas não sabe no que: “a prova é corrigida por um robô, um programa desenvolvido pela escola que, simplesmente, nos sinaliza que houve erros, mas não nos mostra o por quê”.

Liderança nas fintechs e os unicórnios brasileiros

O mercado de inovação também ferve no Brasil: startups que revolucionam o mercado e transformam os hábitos de consumo, proliferação de aceleradoras e a fila de jovens talentos ávidos por criarem seu próprio negócio. O Brasil já é o país com o maior número de fintechs da América Latina – empresas de tecnologia voltadas ao mercado financeiro, que vem revolucionando o sistema bancário e fazendo os grandes bancos reverem suas políticas de tarifas e serviços ao consumidor. O Brasil também já pode gabar-se de ter suas primeiras startups unicórnio – startups avaliadas em mais de US$1 bilhão de dólares.

No entanto, assim como na França, o gargalo para desbloquear todo o potencial criativo é o mesmo: educação. Formar talentos que possam “desafiar o sistema” e que suportem e acompanhem toda a evolução tecnológica. Alguns grandes da indústria, que padecem da falta de talentos na área, oferecem cursos de programadores gratuitamente.

Vinte e quatro projetos de startups são acompanhados por líderes da indústria: Amazon, Facebook, Microsoft, L'Oréal, entre outros. Foto Patrick Tourneboeuf
Vinte e quatro projetos de startups são acompanhados por líderes da indústria: Amazon, Facebook, Microsoft, L’Oréal, entre outros. Foto Patrick Tourneboeuf

Marlene Oliveira

Jornalista e profissional de comunicação, vive em Paris e conhece bem a ebulição do ambiente corporativo. Acredita que a queda do império romano "é pouco" perto das transformações que a sociedade está vivendo mas, otimista até a raiz dos cabelos, acredita que dias melhores virão. Inxalá!

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