Onde só tempo é dinheiro

A gatinha Eva, deitada na sua cadeira, recebe as pessoas que chegam ao Lemni. Foto de Florência Costa

Um lugar para trabalhar, tomar café e beliscar, pagando só pelos minutos que você fica nele

Por Florência Costa | ODS 12ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 23 de setembro de 2016 - 08:01 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:44

A gatinha Eva, deitada na sua cadeira, recebe as pessoas que chegam ao Lemni. Foto de Florência Costa
A gatinha Eva, deitada na sua cadeira, recebe as pessoas que chegam ao Lemni. Foto de Florência Costa
A gatinha Eva, deitada na sua cadeira, recebe as pessoas que chegam ao Lemni. Foto de Florência Costa

Um experimento social que nasceu na Rússia em 2011 desembarca no Brasil para a alegria dos que buscam se sentir em casa fora de casa. O Movimento anti-café (que apesar do nome, glorifica a bebida) investe na criação de espaços acolhedores pelos quais você paga apenas pelo tempo gasto neles e não pelo que consume.

As pessoas pagam pelo tempo e também pelas experiências que usufruem aqui dentro. O anti-café, que na verdade não tem nada a ver com a ideia de ser contra o café, incentiva as pessoas a interagirem.

Diferentemente de um café normal, o propósito não é incentivar o consumo, mas a comunicação e a interação entre os clientes, que podem se servir à vontade de cafés, chás e petiscos, além de terem à sua disposição jogos, wi-fi, infra-estrutura para trabalhar, e, claro, uma atmosfera relaxante ao mesmo tempo. A ideia migrou para outros países da Europa e chegou recentemente no Brasil.

Primeiro representante deste movimento a abrir as portas em São Paulo, o Lemni é uma simpática casa no bairro de Pinheiros. Ao chegar lá, você dá de cara com Eva, a mascote da casa: a gatinha vira-lata havia sido atropelada na rua. Foi o único pedido que a dona da casa fez ao alugar o imóvel. Eva –  que está sempre deitada em uma cadeirinha das mesas da entrada –  é um sucesso.

“As pessoas pagam pelo tempo e também pelas experiências que usufruem aqui dentro. O anti-café, que na verdade não tem nada a ver com a ideia de ser contra o café, incentiva as pessoas a interagirem”, explica a economista Rebecca Nogueira, sócia da irmã, a zootecnista Giuliana, no empreendimento. O Lemni abriu no fim de junho. “Nós mesmas pintamos as paredes e conseguimos os móveis por doação. Seguimos a lógica da economia compartilhada. Então, trocamos serviços também com algumas pessoas: um especialista em marketing digital promoveu o lugar e nós lhes demos tempos de graça aqui”, contou.  A tabela de preços é de R$ 12 por 30 minutos e a cada 15 minutos acrescenta-se R$3. Uma hora custa R$18 e mais de seis horas, R$66. Futuramente o Lemni pretende passar a testar formatos de pagamentos mensais.

O criador deste movimento é o empreendedor russo Ivan Mitin, com o seu Ziferblat (veja o vídeo acima), o anti-café que já abriu várias franquias em Moscou e na Europa: para ele, os anti-cafés são mais um movimento social do que um negócio. Durante a realização de um projeto artístico, Mitin teve a ideia, junto com amigos, de alugar um sótão onde pudesse reunir as pessoas. No início, a contribuição era voluntária. Uma mala aberta na entrada era a dica para quem pudesse pagar. O sótão era uma casa de todos, acolhedor, e essa atmosfera incentivava a criação. Depois dessa expriência positiva, abrir um anti-café foi um pulo. Um local onde a pessoa paga pelo tempo e não pelo o que consome. Nos Ziferblat tudo é de graça, menos o tempo.

Rebeca tomou conhecimento do movimento anti-café quando viveu na França há alguns anos. “A primeira vez que entrei em um, me apaixonei. Estava fora do meu país e queria ter um lugar agradável para ligar pelo skype, falar com a minha família”.

No Lemni, as administradoras estão lá atrás do balcão para preparar o café (expresso, coado ou feito na prensa francesa) e ajudar as pessoas a esquentarem algum prato no microondas (sim, você pode trazer a sua própria comida e aquecer lá). Pertinho do balcão há duas mesas: uma com chás e frutas sem agrotóxico e outra com petiscos, como pão de queijo, bolos, pães integrais e granola.

Detalhe fundamental: as comidas oferecidas são necessariamente de produtores locais. A lógica é incentivar a rede de fornecedores do bairro. Os pães, de fermentação natural, são feitos artesanalmente por um produtor do bairro que criou a marca Oruí. “Criamos um sistema um pouco diferente do original, seguimos um caminho do meio. Há alguns itens, deixados aqui por produtores locais, que estão à venda”, contou Rebeca. São brownies, alfajores e docinhos de damascos, por exemplo.  O sistema de limpeza é colaborativo: você deixa sua louça suja em cestas. Mas se tiver vontade, pode lavá-las.

Diferentemente de um café normal, o propósito do Lemni não é incentivar o consumo, mas a comunicação e a interação entre os clientes. Foto de Florência Costa
Diferentemente de um café normal, o propósito do Lemni não é incentivar o consumo, mas a comunicação e a interação entre os clientes. Foto de Florência Costa

Lemni é a abreviação de lemniscata: a curva do infinito que parece um oito deitado. Tempo e espaço são sinônimos do anti-café, daí o nome escolhido.  Quando você chega no numero 781 da Rua Simão Álvares, pensa que a casa é pequena. Sua frente realmente é estreita. Mas ao entrar e se aventurar pelo espaço, percebe que é bem grande. Tem um quintal comprido com fornos à lenha e outros cômodos onde funcionam uma série de empreendimentos da nova economia que dividem os custos da casa. Ali, por exemplo, é a sede do Bike Angel (que ajuda as pessoas a andar de bicicleta pela metrópole), e a Gangorra (uma consultoria de projetos de mobilidade urbana), além de um escritório de designers digitais.

O detalhe charmoso é que todos se conheceram pela bicicleta. “A gente fazia parte de um grupo que começou antes da febre da bicicleta, há 10 anos”, conta Rebecca, apaixonada pelo assunto como se percebe pelo colarzinho que usa, com um penduricalho de bicicleta de prata.

Nas paredes de tijolo pintadas de branco há quadros com fotos do Brasil, Cuba e outros países, de Bruno Fernandes. Elas estão à exposição e à venda em sistema de leilão. Os frequenteadores podem promover seus eventos lá dentro. Já houve roda de leitura, por exemplo. Outro freguês usou o espaço para gravar um programa de culinária. “Empresas gostam de fazer reuniões aqui porque já perceberam que quebrar a rotina e sair do ambiente de trabalho é producente”, disse Giuliana. De fato, não é um café, como definiu o criador russo:  é um epicentro cultural e social.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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