Uma encruzilhada no Estácio

A esquina do Estácio onde Marielle e Anderson foram executados. Foto Oscar Valporto

Entre o samba e a violência, otimismo e o desânimo em um dos largos mais famosos da cidade

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 2 de abril de 2018 - 08:21 • Atualizada em 2 de abril de 2018 - 16:21

A esquina do Estácio onde Marielle e Anderson foram executados. Foto Oscar Valporto
Homenagens na esquina do Estácio onde Marielle e Anderson foram executados. Foto Oscar Valporto
Homenagens na esquina do Estácio onde Marielle e Anderson foram executados. Foto Oscar Valporto

Uma semana de luto por Marielle Franco e Ânderson Gomes: procuro uma camisa preta e sóbria para o ato ecumênico.  Encontro uma nova só com #Samba, que me cai bem. No caminho do trabalho, vou lendo notícias sobre o crime bárbaro, executado praticamente ao lado da estação do metrô. “Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio”. Nada tem de amoroso no assassinato, mas a canção melancólica de Luiz Melodia, cria do bairro, não me sai da cabeça. Já em frente ao computador, o artigo do professor Luiz Antonio Simas me lembra que o samba carioca urbano nasceu praticamente ali, onde Marielle morreu: no Estácio, berço da Deixa Falar, primeira escola de samba, de Ismael Silva, de Alcebíades (Bide) Barcelos, de Nilton Bastos, de Armando Marçal – turma de bambas reunida na subida do Morro de São Carlos.

No Centro da cidade, duas semanas depois do crime, ainda tem gente na rua para celebrar as vítimas e cobrar a prisão dos assassinos. São dias estranhos: é bom ver ruas ocupadas; é doloroso ver que ocupantes choram.  Torno a lembrar do texto de mestre Simas: “o samba é testemunha das poderosas contradições do Rio de Janeiro”

Essas referências e coincidências – que talvez nada signifiquem – permanecem batucando na minha cabeça por dias. Na sua última noite por aqui, Marielle saiu da Rua dos Inválidos, outrora endereço até elegante do Centro do Rio, seguiu pela Rua Frei Caneca – republicano que substituiu o imperial Conde D’Eu no batismo da via – e depois pela Salvador de Sá (irmão do fundador e ex-governador da capitania ainda no Brasil Colônia).  O carro com Marielle e Ânderson passou pela estátua de Ismael Silva e pela entrada do Morro de São Carlos, um dos primeiros a serem ocupados pela população pobre – descendentes de escravos em sua maioria – expulsa do Centro pelo bota-abaixo modernizador dos primeiros anos do século passado. E ela foi executada logo adiante, quando a Rua Estácio de Sá vira Joaquim Palhares, encontrando a Haddock Lobo e a João Paulo I: uma encruzilhada, exatamente onde um dia foi o Largo do Estácio.

A estátua de Ismael Silva, no Estácio, berço da Deixa Falar, primeira escola de samba. Foto de Oscar Valporto
A estátua de Ismael Silva, no Estácio, berço da Deixa Falar, primeira escola de samba. Foto de Oscar Valporto

Ainda nos tempos coloniais, o lugar chamava-se Largo do Mata-Porcos, mas já era um entroncamento: os antigos viajantes que vinham da cidade dividiam-se ali entre os que iam para os lados do Engenho Velho, área da hoje Tijuca, e os que seguiam na direção do Engenho de São Cristóvão. No largo, humanos e seus cavalos paravam para matar a fome e a sede e descansar os corpos. Em 1746, construiu-se, ali, a primeira Igreja do Divino Espírito Santo, para cuidar também do espírito. Um século depois, a encruzilhada virou Largo do Estácio, homenageando o fundador da cidade, um local cada vez mais movimentado pois um caminho levava às terras prósperas da Tijuca e outro à residência imperial. Com a chegada da República, o largo virou ponto de batucadas, de rinhas de galo, de encontros de namorados e de procissão – o antigo santuário foi demolido na virada do século, mas ergueu-se uma nova igreja no mesmo lugar. Cavalos e charretes foram substituídos por bondes e carros: até a inauguração da Avenida Presidente Vargas, em 1944, o Largo do Estácio era palco de congestionamentos, com a convergência dos cariocas a caminho da cada vez mais urbanizada Tijuca e daqueles a caminho de São Cristóvão e os subúrbios da Leopoldina.

“No Largo do Estácio, minha cuíca furou o couro” – o começo de um samba muito antigo vem na minha cabeça enquanto o trem do metrô me leva na direção do berço da Deixa Falar. Seria um samba de Ismael na voz de Francisco Alves, grande comprador de músicas dos sambistas do Estácio? Antes de chegar, o Google já informou que “Largo do Estácio”, gravado sim pelo Rei da Voz, é parceria de Haroldo Lobo e David Nasser.  Mas o desembarque lembra que o Largo do Estácio – inspirador deste samba, da juventude de Ismael Silva e Luiz Melodia – não existe mais. A construção da estação e urbanização atropelada da Cidade Nova fizeram sumir o ponto de encontro como testemunha a Igreja do Divino Espírito Santo, hoje na confluência das tijucanas Haddock Lobo e João Paulo I e da Joaquim Palhares, caminho para a Praça da Bandeira e a Zona Norte. Naquela encruzilhada, os assassinos emboscaram o carro da vereadora e mataram Marielle e Ânderson, como lembram cartazes espalhados pelos muros.

O arroz de porco no tradicional Kalango, entre o Estácio e a Praça da Bandeira. Foto Oscar Valporto
O arroz de porco no tradicional Kalango, entre o Estácio e a Praça da Bandeira. Foto Oscar Valporto

Nestas tardes quentes de começo de outono, circular pelo largo para ver a estátua de Ismael na pequena praça com o nome do sambista e a subida do São Carlos também cria uma dúvida neste andarilho. Seguimos para a Tijuca, onde a uma estação de distância, nem dois quilômetros a pé, chega-se às tradicionais empadas do Salete ou aos pastéis de jiló com linguiça do Bar Madrid? Ou avançamos na direção da Praça da Bandeira, a caminho das iguarias nordestinas do Kalango? Vou no arroz de porco do restaurante de Emerson Pedrosa e Katia Barbosa na Joaquim Palhares; deixo empadas e pastéis para uma próxima vez. E, na volta ao trabalho, fico olhando de novo o mural de entrada da Rua João Paulo I, onde o carro de Marielle parou depois dos tiros. Seu sorriso está espalhado pelas fotos, mas são poucos os pedestres nesse cruzamento de automóveis para ver a homenagem.

No Centro da cidade, duas semanas depois do crime, ainda tem gente na rua para celebrar as vítimas e cobrar a prisão dos assassinos. São dias estranhos: é bom ver ruas ocupadas; é doloroso ver que ocupantes choram.  Torno a lembrar do texto de mestre Simas: “o samba é testemunha das poderosas contradições do Rio de Janeiro”. E lembro também que, dias depois do assassinato, o bar Bip-Bip, onde o samba se espalha pela calçada em Copacabana, foi palco de uma manifestação de ódio contra quem homenageava Marielle e Ânderson. Duas semanas depois do crime, tem show de cantoras negras na Praça Tiradentes e ato de protesto na Cinelândia; e também notícias de tiroteio na Avenida Brasil e no Leblon. Corações cariocas ficam assim: numa encruzilhada entre a alegria e a tristeza, entre o otimismo e o desânimo, entre o samba e a violência no Largo do Estácio.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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