#RioéRua: tremoços e outras antiguidades na Rua do Senado

Armazém do Senado: de cerveja a vassouras, de cachaças a produtos de limpeza desde 1907 (Foto: Oscar Valporto)

Encontro com uma tradição da baixa gastronomia após flanar entre casarios centenários do antigo Centro

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 27 de maio de 2019 - 08:00 • Atualizada em 2 de outubro de 2023 - 16:56

Armazém do Senado: de cerveja a vassouras, de cachaças a produtos de limpeza desde 1907 (Foto: Oscar Valporto)

Primeiro sábado do mês – o de junho vem aí – é dia de movimento no Centro: Feira Rio Antigo na Rua do Lavradio, Tiradentes Cultural, e gastronômico, na praça, e os antiquários ocupando calçada e asfalto com suas peças na Rua do Senado. Sempre um bom dia para flanar por ali: é possível mergulhar na muvuca das barracas da feirinha na Lavradio, onde tem um pouco de tudo, ou fazer uma viagem no tempo pelo casario da Rua do Senado, com direito a ouvir o samba na roda do grupo Marias do Zé, nas tardes do Armazém do Senado, na esquina da Gomes Freire.

A Rua do Senado, hoje, começa perto da Catedral Presbiteriana, e termina na Rua do Riachuelo. Quando foi aberta no fim do século XVIII, entretanto, a via ligava apenas a rua Espírito Santo (hoje Pedro I) à Rua dos Inválidos, terminando no Morro Pedro Dias, chamado a partir de então de Morro do Senado. O batismo da rua, e do acidente geográfico, tem mas de uma explicação mas todas relacionadas ao Senado da Câmara – uma espécie de câmara de vereadores não eleita, formada por funcionários burocratas na então colônia portuguesa para ajudar na administração da cidade. O vice-rei do Brasil, na ocasião, era o Conde de Resende que batizou a paralela Rua do Resende, aberta na mesma época.

Rua do Senado com a Igreja de Santo Antônio dos Pobres na esquina da Rua dos Inválidos: lugar de oração desde 1807 (Foto: Oscar Valporto)
Rua do Senado com a Igreja de Santo Antônio dos Pobres na esquina da Rua dos Inválidos: lugar de oração desde 1807 (Foto: Oscar Valporto)

O Morro do Senado teve o mesmo destino do Morro do Castelo e de outros da cidade: veio abaixo. Seu pico, com 50 metros de altura, estava onde fica hoje a Praça da Cruz Vermelha. A conclusão do desmonte e a começo da urbanização da praça vieram na administração Pereira Passos, na primeira década do século XX, mas o morro começou a ser demolido aos poucos a partir de 1880 – inclusive para a ampliação da Rua Senado para além igrejinha de Santo Antonio dos Pobres, na esquina da Rua dos Inválidos, erguida no começo do século XIX.

Prédio das Pharmácias Granado na Rua do Senado inaugurado em 1912: funcionou como laboratório e fábrica até o começo do século XXI (Foto: Oscar Valporto)
Prédio das Pharmácias Granado na Rua do Senado inaugurado em 1912: funcionou como laboratório e fábrica até o começo do século XXI (Foto: Oscar Valporto)

É variado o cenário visto em um caminhada pela Rua do Senado dois séculos depois. A via abriga quantidade impressionante de pequenos hotéis (Cruz de Ouro, Paraguai, Midway, Fênix, Senado Rio Hotel), alguns com jeito de motel, no trecho entre a Riachuelo e a Vinte de Abril (na altura da Praça da República. Mas, por toda parte, há um casario centenário a julgar pelas datas inscritas nos sobrados: 1918, 1921, 1922. O prédio da Associação dos Constructores Civis – ainda hoje sede do Sindicato da Construção do Rio – é de 1919; o da Granado Pharmácias (Laboratório Pharmacêutico) é de 1912; a do antigo Centro de Previdência, hoje loja da Bonsom também tem quase 100 anos.

São muitos os sobrados fechados, uns tantos abandonados. A Igreja de Santo Antonio dos Pobres continua ali, na esquina de Inválidos, mas não é a mesma de 1807: passou por várias reformas ao longo dos séculos e hoje está com o estilo neorromântico da reforma feita na metade do século passado (em frente à igreja, foi erguido um prédio comercial de 20 andares, que deveria ter sido proibido pelo patrimônio histórico). Convivem, na Rua do Senado também, de barbearias moderninhas a lojas de ferragens, passando por alguns pontos de comércio de antiguidades que já foram a grande marca da região e ainda atraem clientes de outros bairros. São esses comerciantes que botam suas peças na rua no primeira sábado do mês – no trecho entre Lavradio e Gomes Freire – e movimentam mais o dia.

Antiquário tradicional de barbearia moderninha lado a lado na Rua do Senado: cenário variado (Foto: Oscar Valporto)
Antiquário tradicional de barbearia moderninha lado a lado na Rua do Senado: cenário variado (Foto: Oscar Valporto)

Após essa flanada pelo passado, chega-se, com a exata medida de fome e sede, ao Armazém do Senado, estabelecido na esquina com a Gomes Freire, desde 1907. Está com a mesma cara de sempre: um pé direito que deve ter mais de quatro metros de altura, vassouras penduradas no teto para lembrar dos tempos quando era mesmo armazém, e ainda detergentes, sabão em pó, farinha de trigo, óleo, azeite nas enormes prateleiras.

Cerveja, cachaça e tremoços sobre balcão de mármore: pura arte da baixa gastronomia do Armazém do Senado (Foto: Oscar Valporto)
Cerveja, cachaça e tremoços sobre balcão de mármore: pura arte da baixa gastronomia do Armazém do Senado (Foto: Oscar Valporto)

A alma, entretanto, é de botequim e o elenco de cachaças não deixa dúvida: 51, Ypióca, Caninha da Roça, Velho Barreiro, Praianinha, Fogo Paulista, Pitú e as mineiras Salinas, Seleta e Magnífica. Também tem Campari, rum Bacardi, Steinhaeger Becosa, vodka Orloff e conhaque Domeq, todas biritas obrigatórias de botecos do século passado, além de batidas – gengibre, banana – para a freguesia. No balcão de mármore e nas mesas de madeira, a ocupação maior ainda é pelas cervejas – a oferta vai das históricas Brahma e Antártica, ambas com mais de 130 anos, até jovens e artesanais como a Colorado. O cardápio dos petiscos também é básico: queijos, azeitonas, salames e – o ponto alto da visita – tremoços, Das coisas que mais sinto falta dos meus primeiros botequins, uma boa porção de tremoços para acompanhar a cerveja está no topo da lista. Não sei porque este legítimo petisco português – que até age, garantem, contra o colesterol ruim – foi desaparecendo dos balcões., Mas é reconfortante saber que ainda há botecos cultivando as melhores tradições da baixa gastronomia.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *