#RioéRua: Onde a Zona Norte começou

Igreja de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, a mais antiga do Rio (Foto Oscar Valporto)

Irajá, terra de bambas e da igreja mais antiga da cidade

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 12 de agosto de 2018 - 08:11 • Atualizada em 14 de agosto de 2018 - 15:19

Igreja de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, a mais antiga do Rio (Foto Oscar Valporto)
Igreja de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, a mais antiga do Rio (Foto Oscar Valporto)
Igreja de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, a mais antiga do Rio (Foto Oscar Valporto)

Minha amiga Flávia Oliveira ganhou festa de aniversário solene, com direito à Medalha Tiradentes, na Assembleia Legislativa, por iniciativa do deputado Carlos Minc. Queria estar lá porque ela merece todas as homenagens por sua capacidade de agregar pessoas e distribuir afetos, de endurecer sem perder a ternura. A rede social ainda me fez a gentileza de me lembrar do aniversário de três anos atrás quando a jornalista arrastou um bando de amigos cariocas até a Bahia – onde eu e Telma então morávamos e onde viveram seus ancestrais – para uma comemoração especial. Não pude testemunhar a medalha e fiquei imaginando como homenageá-la até lembrar de uma coluna escrita por ela sobre educação que tinha por título “Era uma vez em Irajá“, com recordações de sua infância escolar.

Tem estação de metrô em Irajá e pego o caminho dos trilhos na direção do subúrbio que também faz parte da história da cidade. Resiste no bairro, hoje, a igreja mais antiga do Rio:  Nossa Senhora da Apresentação, erguida em 1613, antecedida apenas pela Igreja da Candelária original, demolida no começo do século XIX, e as igrejas do Morro do Castelo (de São Sebastião e do Colégio dos Jesuítas), arrasadas junto com o monte. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tinha pouco mais de 50 anos quando a capela foi erguida, e a sesmaria de Irajá ia da atual Benfica até a região de Jacarepaguá.

A quadra do Boêmios do Irajá, por onde passou Zeca Pagodinho (Foto Oscar Valporto)
A quadra do Boêmios do Irajá, por onde passou Zeca Pagodinho (Foto Oscar Valporto)

Ou seja, Irajá era a Zona Norte inteira e boa parte da Zona Oeste. Aos poucos, a cidade foi se organizando e sua divisão levou Jacarepaguá e Campo Grande, desmembrados ainda no século XVII, Inhaúma e Penha, no século XVIII, e Madureira e Realengo, no XIX. Engenhos de cana de açúcar dominaram a paisagem do bairro durante mais de 200 anos, apesar de os fazendeiros, com mão de obra escrava, cultivarem também banana, laranja, manga, couve, alface, agrião, chicória. O senhor de engenho mais famoso era – ora, ora – Dom Manuel do Monte Rodrigues de Araújo, o Conde de Irajá, bispo do Rio de Janeiro, que celebrou o casamento de Dom Pedro II, batizou suas filhas e virou nome de rua em Botafogo.

O prédio do Cine Irajá, mais um cinema que cedeu lugar a uma sede da Universal (Foto Oscar Valporto)
O prédio do Cine Irajá, mais um cinema que cedeu lugar a uma sede da Universal (Foto Oscar Valporto)

O cenário de hoje é urbano e poluído na saída da estação do metrô, bem no cruzamento da Avenida Monsenhor Félix com a Automóvel Clube. Nesta encruzilhada, dá para ver a quadra do bloco Boêmios de Irajá por onde passaram Zeca Pagodinho, que nasceu no bairro e deu seus primeiros passos no mundo do samba por ali, e a cantora Dorina, outra nativa e frequentadora do bloco na adolescência. A quadra fica em frente ao antigo Cine Irajá, aberto nos anos 1940 e fechado no começo dos 80 – a fachada está preservada, mas o imóvel abriga agora um templo da Igreja Universal. Mas quadra e igreja ficam do outro lado da linha do metrô, caminho para Vaz Lobo; a igreja onde nasceu a Zona Norte do Rio e as escolas da Flávia ficam para o lado de Vista Alegre e Braz de Pina.

Rua Honório de Almeida, onde morou Nei Lopes, que homenagerou o bairro no "Sanba do Irajá" IFoto Oscar Valporto)
Rua Honório de Almeida, onde morou Nei Lopes, que homenageou o bairro no “Samba do Irajá” (Foto Oscar Valporto)

São pouco mais de 30 minutos caminhando pela Monsenhor Félix: andarilho tira de letra, ainda mais com a curiosidade do serviço de alto-falante que anuncia de papelaria à barbearia, de loja de colchão à churrascaria, do Trem da Pipoca ao Urubu Cheiroso. No caminho, ainda tem mais um endereço de bamba: Rua Honório de Almeida, onde, quando e ainda se chamava Travessa Pau de Ferro, morava o jovem Nei Lopes, compositor e escritor. “São caminhos, são esquemas/descaminhos e problemas/é o rochedo contra o mar / é isso aí, ê Irajá/meu samba é a única coisa que eu posso te dar” – cantarolo o samba de Nei enquanto me aproximo da Praça Nossa Senhora da Aclimatação, que está bem cuidada, com quadra de esporte, brinquedos para crianças e uma Nave do Conhecimento.

A igreja histórica, berço da Zona Norte, não está tão bem tratada, com paredes descascando. Mas preserva, apesar das reformas pelas quais passou, relíquias da capela original do século XVII: o altar-mor, a pia-batismal de mármore, uma imagem de Nossa Senhora da Apresentação. Numa cidade que tratasse melhor de sua história, faria parte dos roteiros turísticos. E isso é ainda mais difícil na região do Rio de Janeiro, que mais reclama da decadência econômica, do abandono pelos governantes e da falta de segurança. Mas este trecho de Irajá, residencial e comercial, com muita gente circulando na rua, resiste ao clima de baixo astral que costuma contaminar a Zona Norte.

A Escola Municipal Francisco Sertorio Portinho, onde estudou Flavia Oliveira (Foto Oscar Valporto)
A Escola Municipal Francisco Sertorio Portinho, onde estudou Flavia Oliveira (Foto Oscar Valporto)

No caminho de volta, passo pelas escolas municipais, onde minha amiga Flávia Oliveira (“Mulher negra. Mãe. Brasileira. Carioca. Jornalista. Do candomblé.Do samba”) escreveu suas primeiras frases, tornou texto suas ideias de criança. A Escola Municipal Francisco Sertorio Portinho, pertinho da igreja, parece bem cuidada: a pequena Flavia, ótima aluna, conta na coluna citada lá no começo que saiu de lá para estudar na Mato Grosso, considerada a melhor do bairro. A escola ainda mantém essa fama, garantem as mães que esperam pelos filhos na porta. Mas que não deixam de se queixar dos problemas comuns ao ensino público. Antes de pegar o metrô de volta ao Centro, ainda dá tempo de parar no Lampião para saborear um baião de dois e torcer para dias melhores para o patrimônio histórico, a educação pública e a Zona Norte.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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4 comentários “#RioéRua: Onde a Zona Norte começou

  1. Cleydson disse:

    Boa reportagem! Sou pesquisador da Freguesia de Irajá. Tem alguns equívocos aí, a Penha se emancipou de Irajá, em 1919! Madureira (Irajá) e Realengo (Campo Grande) também, se emanciparam em 1926.

  2. Cleydson Garcia disse:

    Boa reportagem! Sou pesquisador da Freguesia de Irajá. Tem alguns equívocos aí, a Penha se emancipou de Irajá, em 1919! Madureira (Irajá) e Realengo (Campo Grande) também, se emanciparam em 1926.

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