#RioéRua: a frustração do Jardim de Alah

A paisagem quase desértica, com a “duna” de areia retirada do canal (Foto Oscar Valporto)

A cidade desperdiça uma área privilegiada entre o mar e a lagoa

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 4 de fevereiro de 2019 - 08:17 • Atualizada em 17 de fevereiro de 2023 - 17:52

A paisagem quase desértica, com a “duna” de areia retirada do canal (Foto Oscar Valporto)

Leio em algum lugar que a revitalização do parque do Jardim de Alah é mais um dos projetos frustrados da prefeitura: era para ser uma parceria com a iniciativa privada que promoveria um evento neste privilegiado local entre o mar e a lagoa, entre Ipanema e Leblon.  Não foi o primeiro plano que não deu certo. Antes do parque, veio o canal, construído no começo da década de 1920. O prefeito Carlos Sampaio – aquele da derrubada do Morro do Castelo – adotou projeto do engenheiro Saturnino de Brito para limpar as águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, imundas um século atrás, com grandes bolsões de lama trazidos dos rios que desembocavam ali. A mortandade de peixes já era um problema crônico. A ideia era a renovação das águas da lagoa através da entrada da água do mar.

A inscrição com o nome dos "criadores" do parque está pichada (Foto Oscar Valporto)
A inscrição com o nome dos “criadores” do parque está pichada (Foto Oscar Valporto)

O plano funcionou por pouco tempo porque, junto com o canal, vieram obras de aterro e urbanização no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas que tornaram as águas ainda mais poluídas. Nas últimas décadas, houve seguidos projetos para resolver o problema, mas o canal do Jardim de Alah segue operando como a mesma precária ferramenta de renovação das águas – em dezembro de 2018, foram retiradas mais de 50 toneladas de peixes mortos da lagoa. O calor, esgoto atirado no local e a histórica baixa renovação das águas eram os suspeitos de quase sempre. O resultado teria frustrado os idealizadores do canal, homenageados com inscrição em pedra na escada na entrada do parque, na Avenida Vieira Souto: o presidente Epitácio Pessoa, o prefeito Sampaio, e Saturnino de Brito – a inscrição em pedra, aliás, está pichada neste verão de 2019 e mal dá para ser vista.

Os planos para o parque ao longo do canal também foram feitos com capricho. O arquiteto Azevedo Neto fez um traçado, de modelo francês, com 14 mil metros de canteiros, com esculturas, lagos e caramanchões. O parque só foi inaugurado em 1938, quando construiu-se a ponte ligando as avenidas Visconde de Pirajá e Ataulfo de Paiva e foram instaladas as esculturas Proteção e A Mulher e o Felino. O projeto ambicioso previa o potencial turístico da região e a navegação no canal por gôndolas até a lagoa: podem ser vistos, ainda neste século XXI cinco deques, para embarque e desembarque de pessoas. A prefeitura chegou a comprar duas gôndolas mas a novidade durou pouco: foi outro plano frustrado. Até o começo da década de 1960, pedalinhos – que ainda hoje fazem parte do cenário da Lagoa Rodrigo de Freitas – costumavam circular no Jardim de Alah, mas foram sendo afastados pelo assoreamento do canal e a água cada vez mais poluída.

Moradores de situação de rua no Jardim de Alah (Foto Oscar Valporto)
Moradores de situação de rua no Jardim de Alah (Foto Oscar Valporto)

Mas, até hoje, jamais o parque do Jardim de Alah teve a ocupação sonhada por seus idealizadores. Talvez seja o histórico de desigualdades desta cidade. Do lado de Ipanema, foram subindo prédios mais luxuosos, principalmente perto da avenida mais cara da cidade, a Vieira Souto. Do lado do Leblon, quando o parque foi inaugurado, havia uma favela à beira da lagoa, a Favela do Pinto – na altura de onde hoje fica o Clube Caiçaras. A favela foi removida – depois de misteriosos incêndios – mas boa parte de seus moradores ganhou apartamentos na Cruzada São Sebastião, um condomínio para pobres exatamente às margens do Jardim de Alah. Pelas fotos, ao longo de décadas, o parque está quase sempre vazio. Em 2003, após a última reforma digna do nome, vizinhos esperavam alguma revitalização ou ocupação. Em 2006, apareceu a ideia, logo descartada, de construir na área o novo aquário da cidade.

A paisagem quase desértica, com a "duna" de areia retirada do canal (Foto Oscar Valporto)
A paisagem quase desértica, com a “duna” de areia retirada do canal (Foto Oscar Valporto)

A paisagem é – quase – desértica neste verão de 2019. Na Praça Saldanha da Gama, junto à orla, a estátua do almirante divide o espaço com uma montanha de areia retirada do canal e o canteiro de obras da empresa responsável pela operação das máquinas que garantem a renovação da água; alguns moradores de rua também aproveitam o espaço.  Entre as avenidas Prudente de Morais e San Martin e Visconde de Pirajá e Ataulfo, fica a área mais cuidada e movimentada do parque: cachorros e seus donos aproveitam o espaço onde estão as duas estátuas com animais. É a única onde o Jardim de Alah cumpre seu destino de área para lazer.

Cães brincam sob a proteção da estátua (Foto Oscar Valporto)
Cães brincam sob a proteção da estátua (Foto Oscar Valporto)

Depois, até a lagoa, o parque vira mesmo um deserto. Até 2017, a área estava cercada por tapumes, depois de ter servido de canteiro para as obras da chamada linha 4 do metrô. O canteiro demorou a ser desfeito por conta dos problemas da superfaturada e nunca concluída estação Gávea. Os tapumes saíram e agora dá para ver alguns bancos quebrados e árvores cortadas, mas o lugar já esteve pior e mais sujo. Um dos deques serve de moradia para quem não tem: é a única alma viva na maior área do parque. Nos fins de semana, na margem próxima à Cruzada São Sebastião, moradores, às vezes, se reúnem para fazer um churrasco e aproveitar a vista da lagoa e do Cristo Redentor. Sempre tem alguém que enxerga além da frustração. #RioéRua. 

O churrasquinho dos moradores da Cruzada: além da desolação do Alah (Foto Oscar Valporto)
O churrasquinho dos moradores da Cruzada: além da desolação do Alah (Foto Oscar Valporto)

 

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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