Quem tem medo da concorrência?

Taxistas interrompem o trânsito no Aterro do Flamengo e em vários outros pontos da cidade em protesto contra o Uber

Chegada do Uber obriga taxistas a melhorarem o serviço, mas caminho ainda é longo

Por Gilberto Scofield | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 4 de dezembro de 2015 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:06

Taxistas interrompem o trânsito no Aterro do Flamengo e em vários outros pontos da cidade em protesto contra o Uber
Taxistas interrompem o trânsito no Aterro do Flamengo e em vários outros pontos da cidade em protesto contra o Uber
Taxistas interrompem o trânsito no Aterro do Flamengo e em vários outros pontos da cidade em protesto contra o Uber

No dia 21 de novembro passado, um motorista do Uber e dois passageiros, um publicitário e sua namorada, foram ameaçados em frente a um bar em Porto Alegre, a quinta cidade do país onde o serviço de motorista particular via aplicativo atua (começou a operar em novembro, aliás). Ali, o Uber causa o mesmo desconforto em autoridades e motoristas de táxi que vemos no Rio, SP, Brasília e Belo Horizonte. Ao contrário do cipoal de regulamentos e exigências feitos aos motoristas de táxi pela prefeitura, não há regulamentação para o Uber, o que levou a Câmara dos Vereadores, sob a influência maciça do prefeito Eduardo Paes, a proibir o serviço, restabelecido por um mandado de segurança.

Podem falar o que for. A entrada em cena do Uber – um serviço ótimo que possui uma comunicação pobre e ingênua, baseada na suposição de que seus advogados, seus clientes e suas águas e hambúrgueres vão sozinhos ganhar uma guerra num ambiente sórdido, corrupto e umbilicalmente ligado ao poder local há décadas – caiu como uma bomba no setor de transporte público de passageiros individuais no Rio, onde se encaixam os táxis. A organização, o nível dos serviços e a praticidade do Uber estão forçando o setor de táxis a se reinventar na marra.

A organização, o nível dos serviços e a praticidade do Uber estão forçando o setor de táxis a se reinventar na marra

Apesar de muitos motoristas corretos, o serviço de táxi no Rio é um lixo para a imensa maioria dos cariocas. Eu nem me refiro às clássicas bandidagens em portas de rodoviárias ou aeroportos ou à máfia que é dona de licenças e “emprega” motoristas cobrando dos pobres diárias de R$ 200. Falo dos sujeitos que perguntam para onde você vai antes de decidir aceitá-lo ou não como passageiro, alguns são grosseiros, ouvem programas e músicas horrorosos em volume máximo no rádio, os carros caindo aos pedaços, pontos de táxi que mais parecem estacionamento para os motoristas descontraírem do que prestação de serviço propriamente dita, táxis que te deixam em esquina de ruas porque “não querem sair do caminho”, táxis que somem com a chuva como orientadores de trânsito da CET. Você escolhe a mazela. Elas são muitas e todo carioca tem uma experiência horrorosa com táxi para contar.

A impressão que tenho é que os motoristas de táxi no Rio – e eles nem chegam perto dos paulistas – acham que não estão prestando um serviço público de transporte e que o táxi é um domínio dele, e não do passageiro. Os caras pensam que estão fazendo um favor ao passageiro, aquele sujeito abusado que tem a petulância de pedir que o motorista feche a janela, ligue o ar ou abaixo o som. Dois fenômenos ajudaram a mudar um tanto essa realidade de uns meses para cá – pouco, mas já é uma transformação perceptível: a entrada no mercado do Uber e o surgimento dos aplicativos para celular de táxis.

A concorrência mostrou aos taxistas que a prioridade não são eles, mas os passageiros. De cara, a queda estimada em 30% nos passageiros foi sentida e muitos partiram para o ataque aos carros, motoristas e passageiros do Uber em vez de melhorarem seus serviços. Muitos reclamaram e com razão: afinal, exige-se carteira de habilitação especial, seguro para transportar passageiros, têm que fazer um curso preparatório, não podem ter antecedentes criminais e pagam pela licença do carro valores que podem variar de R$ 5 mil a R$ 180 mil. A regulamentação do Uber é uma auto-regulamentação, ou seja, um carro bacana e um motorista que responda a uma série de exigências da empresa em termos mais ou menos parecidos com o exigido pela prefeitura, sem a licença.

Mas vem cá: quem criou o sistema não foi a prefeitura? E quem o aceitou sem ressalvas não foram os motoristas de táxi? Há algum tempo, o governo federal aprovou uma legislação que transforma essas licenças em capitanias hereditárias que passam de pai para filho. Ou para mulher. Ou para marido. Ou seja, o direito de prestar um serviço público – que hoje se regulamenta via licitação ou concessão – virou um ativo individual. Eu não sou advogado, mas acho isso tão inconstitucional quanto o Uber querer fazer transporte público sem regulamentação.

Sim, porque a comunicação da empresa quer vender a ideia de que o serviço é de motorista particular. Mas o táxi também. E, no entanto, todos transportam passageiros…públicos! Se um acidente envolve um carro do Uber, quem paga o tratamento, hospital, remédios, caso se prove que a culpa foi do motorista? O motorista? Ou o Uber? Isso não pode ser uma mera decisão do Uber. Tem que haver uma regulamentação de papéis do governo para que o passageiro tenha seus direitos claros à luz da legislação. Não se trata de burocratizar, mas defender o lado mais fraco, o que sempre sofre a consequência da incompetência e imoralidade dos fortes.

E por que as prefeituras e Câmaras de Vereadores não se empenham num amplo debate com a sociedade sobre o tema, ouvindo todos os lados da questão? Porque taxista é voto. E voto é poder. Então os taxistas estão com as prefeituras e vereadores em seus bolsos, como aliados. Não nos esqueçamos que, apesar da ladainha do custo de licença, taxistas possuem isenção de IPVA, descontos em carros novos e uma fiscalização totalmente inexistente do poder público. Caso ela existisse, o serviço não seria o descalabro que é hoje.

Por sorte, surgiram os serviços de aplicativos, que colocam em outro patamar os motoristas de táxi, que são identificados e são rastreáveis tanto quanto os motoristas do Uber. A própria classe dos taxistas tratou de melhorar o serviço. As cooperativas, aquelas picaretas do “15 minutos podendo chegar antes”, mas que acabavam obrigando os passageiros a esperar meia hora, 40 minutos, estão definhando diante dos aplicativos.  E há outras coisas. Os taxistas choram com razão por conta da licença e de seu valor. Mas a prefeitura poderia licitar as licenças por determinado prazo – 20 anos, digamos – e só renová-las mediante uma pontuação excelente dos motoristas que seriam avaliados por passageiros, número de multas, ocorrências policiais, etc.  Se o sujeito desistisse antes do tempo, o valor seria devolvido proporcionalmente e um novo motorista convocado via nova licitação das licenças. O que não falta é gente querendo ser motorista de táxi, mas o feudo atual impede novas emissões com o poder do voto. Daí o repúdio ao Uber, que os enfraquece politicamente tanto na Câmara quanto na prefeitura.

No meio do embate e atônitos estão os passageiros. Em minha antiga coluna num jornal daqui do Rio, disse mais o menos o seguinte: com 33 mil taxistas, o Rio possui um táxi para cada 181 moradores. O ideal, afirmam especialistas em mobilidade urbana, é um táxi para cada 300 habitantes nos grandes centos. Ou seja, em tese, não temos do que reclamar. Mas se não precisamos de mais táxis, precisamos de táxis melhores. E bem fiscalizados. Assim como no Uber, precisamos de responsabilidades claras. Há nessa briga um monte de virtudes e um monte de defeitos e há chapeuzinhos vermelhos e lobos maus dos dois lados.

 

Gilberto Scofield

É jornalista e, atualmente, trabalha como consultor de comunicação da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, em Brasília. Além de ser sócio-fundador da empresa Butique Comunicação e marca. Foi editor do jornal O Globo e repórter especial da sucursal de São Paulo após ter passado cinco anos como correspondente em Pequim, na China, e dois anos como correspondente em Washington, nos EUA. retornando ao Brasil em 2010. É colaborador da Globonews, comentarista da rádio CBN e autor do livro "Um brasileiro na China", publicado em 2006. Autor dos blogs "No Império – impressões de um brasileiro na capital dos EUA" e "No Oriente diário de um brasileiro na China“ (Globo Online). Ao longo de sua carreira, escreveu para o Jornal do Commercio, do Rio, Revista Exame, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, Revista Época, IG Finance, O Globo e Globo Online.

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