Os tanques e o preço do Suflair

Blindado da marinha marcando presença em frente ao Museu do Amanhã. Foto Luiz Souza/NurPhoto

Na Sherwood carioca, ladrão de carga corre o risco de virar Robin Hood

Por Agostinho Vieira | ODS 11ODS 8 • Publicada em 13 de agosto de 2017 - 09:00 • Atualizada em 6 de setembro de 2017 - 14:04

Blindado da marinha marcando presença em frente ao Museu do Amanhã. Foto Luiz Souza/NurPhoto
Blindado da marinha marcando presença em frente ao Museu do Amanhã. Foto Luiz Souza/NurPhoto
Blindado da marinha marcando presença em frente ao Museu do Amanhã. Foto Luiz Souza/NurPhoto

Sônia Maria de Jesus não é de Jesus por acaso. Ainda adolescente foi expulsa de casa porque engravidara de um namorado. Quando o menino nasceu, seus pais a aceitaram de volta. Mas com uma condição: o garoto não seria registrado como seu filho. A vida marota reservou outras pancadas para a doméstica, hoje com quase 60 anos. Mas ela sobreviveu ao marido violento, aos patrões sem noção e criou os dois filhos, o segundo tem Jesus no sobrenome, assim como o neto.

O mais novo, André, trabalha como motorista de caminhão, o que vem deixando Sônia sem dormir há bastante tempo. Pudera, só este ano, segundo o Instituto de Segurança Pública, 24 caminhões foram assaltados, em média, todos os dias no Rio de Janeiro. De Itaguaí, onde mora, ela sai de madrugada para trabalhar em Ipanema. Pelo caminho pôde acompanhar, com certo alívio, a chegada dos “meninos do exército” e os tanques que ocuparam algumas ruas e pontos turísticos do Rio.

Em Coelho Neto eu compro três embalagens de Qualy por 10 reais. Todo mundo compra. Nem no aniversário do Guanabara encontro tão barato

Outro dia, no metrô, segunda parte da jornada de três de horas entre a casa e o trabalho, se permitiu uma extravagância e comprou uma barra grande de chocolate Suflair: “Custou só dois reais”, repetia feliz com ares de chocólatra que fez um negócio da China. “Mas Sônia, e o roubo de cargas, e o André?”, perguntou o patrão sem noção e estraga prazeres.

Uma pesquisa rápida no Google mostra que, nos lugares com as melhores ofertas, o tal chocolate aerado da Nestlé pode ser encontrado até por R$ 3.99, jamais por R$ 2. Na verdade, alguns camelôs no Centro já vendem 3 por R$ 5, o que dá menos de R$ 1,70 por unidade. Será que essas barras estão estragadas, fora da validade?  Claro que não. Mostrar a data de fabricação é um dos principais trunfos dos vendedores do metrô.

A Suflair que faz a alegria dos passageiros no Metrô e nos trens do Rio. Reprodução
A Suflair que faz a alegria dos passageiros no Metrô e nos trens do Rio. Reprodução

Sônia sabe que existe uma ligação óbvia entre os caminhões roubados e o Suflair a dois reais. A mesma do Mentos a um real e do carregador de celular a cinco. Sorri envergonhada e dá de ombros como se perguntasse: “Estou errada mesmo?”

O que fazer?

Se a mãe que fica sem dormir por conta do filho caminhoneiro é a mesma que compra o chocolate roubado em promoção, que vê a sua aposentadoria ser garfada pelo governo e que não consegue receber a geladeira nova em casa porque na área onde mora tem muito assalto. “Não entregamos nessa região”.

O que fazer?

Se o empresário que reclama, com razão, do roubo de carga é o mesmo que aumenta os preços para garantir a margem, que sonega impostos para ser competitivo e que apoia o político amigo em troca de favores.

O que fazer?

Se o governo que bota o exército nas ruas é o mesmo que reduz os investimentos em educação, saúde e segurança, que retira direitos trabalhistas, que dificulta a aposentadoria, que aumenta os impostos para preservar o superávit primário, que reduz o salário dos servidores e compra votos para manter a boquinha.

Tropas e tanques nas ruas parecia ser uma solução simples. Mas não é. Segunda a Federação de Transporte de Cargas (Fetranscargas), o número de roubos cresceu 21% mesmo com o reforço de 300 homens da Força Nacional de Segurança. E agora? Há 50 anos, o humorista Stanislaw Ponte Preta já dizia: “Ou restaura-se a moralidade ou nos locupletemos todos”. Pelo visto, não era piada.

Será que nesta Sherwood de desmandos, desgovernos e falta de ética em que vivemos, vamos acabar transformando os ladrões de carga em Robins Hoods modernos? Sônia de Jesus, a dublê de doméstica e economista responde: “Em Coelho Neto eu compro três embalagens de Qualy por 10 reais. Todo mundo compra. Nem no aniversário do Guanabara encontro tão barato”. Talvez seja a famosa mão invisível do mercado agindo outra vez.

Soldados do exército na praia de Ipanema. Foto Mauro Pimentel/AFP
Soldados do exército na praia de Ipanema. Foto Mauro Pimentel/AFP

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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30 comentários “Os tanques e o preço do Suflair

  1. andrea disse:

    Essa semana peguei o metrô e a menina vendia suflair a R$ 2. Insistia em dizer que não era roubado. Achei uma mudança ver as pessoas se olhando, desconfiando , comentando. Ninguém comprou.

    • ana carolina de oliveira disse:

      O que compra a bala perdida de amanhã são os nossos votos, nossa passividade diante desse cenário político e a educação precária da população.

  2. Paulo Oliveira disse:

    Comenta-se muito o roubo de cargas, evidente que seja necessário, porém nenhuma ação repressiva ao comércio informal nos transportes do Rio de Janeiro, ruas e praças.

    • Paty disse:

      Isso pq existe aquela parcela da polícia e funcionários que se corrompe pq o governo atrasa salário ou a Supervia não paga um vale refeição melhor.
      O problema não é o grande, é quem compra!

  3. Eva disse:

    Triste realidade. Raros são os que se preocupam com inversão de valores. Mesmo sabendo que estimulam roubo de cargas e consequentemente a vida de caminhoneiros. Que mundo é esse?

  4. João Vidal disse:

    Sei que muitos compram esse suflair numa loja de atacado perto do mercadão de Madureira. Onde compram a caixa não sai a R$40,00, mantendo uma margem de lucro apertada eles vendem a R$2.00, pois ninguém compra a R$3,00.
    O fato de não pagarem imposto na revenda deixa o produto cerca de 40% mais barato. Para o consumidor final.
    Não sei se todos vendem de carga roubada, mas já vi muitos dos vendedores do trem comprarem em Madureira.

  5. Ilson disse:

    O vendedor ambulante compra uma caixa do produto na distribuidora, já é considerado atacado, não paga 21% de imposto que pagam os comerciantes formais, por isso eles podem vender abaixo do preço dos supermercados e afins.

  6. Carlos disse:

    Amigo só pra corrigir a matéria esses homens e os “tanques de guerra” que na verdade são os blindados em frente ao museu e na praia são da Marinha do Brasil e não do Exército.

  7. Coelho disse:

    Interessante o bem feito o texto, mas o importante é que todo os dias a Câmara dos deputados e Congresso Nacional, votam emendas de leis, para o próprio favorecimento, porque não mudam o Código Penal, Código de Processo Penal, maior idade penal, etc…

    Só com leis mais rígidas: Pena de morte, prisão perpétua, etc… que mudar esta violência, guerra e terrorismo que vivemos no Rio de Janeiro.
    Porque não mudam as leis, pois os próprio seriam condenados, suas esposas e filhos

  8. Natália disse:

    Só acho q analogia com o suflair tá errada, QQ um sabe q eles diminuem a margem de lucro não pagam uma série de coisas q loja paga, façam uma analogia com outros produtos q é comprovadamente roubado.
    O doce é só vc ir em Madureira q verá q da sim pra vender a 2 reais.
    Não tô defendendo não ando de trem todo dia e vejo de carne a faca sendo vendidos, não compro nada evito até os doces pq eles pertubam demais gritando horrores, vejo q muita gente de envergonha de comprar pq é notável q é produto roubado.

  9. Fernando disse:

    A corja do congresso deveria criar leis para manter preso Wien tem que ficar preso. Nada de progressão de pena por comportamento. Nada de a justiça mandar soltar. A polícia só enxuga gelo. E educação de qualidade para todos. Quem não tem o que perder se sujeita a qualquer coisa

  10. Paty disse:

    Pior é ver isso todo dia. Não é carga roubada? Claro que é! Requeijão R$ 2,00? Salame R$ 5,00? Pelo amor!!! Tem que ser muito ingênuo é muito desonesto para comprar. Está longe de ser um país com políticos honestos enquanto a população preterir se dar bem a não fazer uso de meios ilícitos para usufruir de bens e consumo que ele não consegue com o salário que tem. Porém, é grande a adesão de pessoas que não compactuam com isso. Vamos limpando…vamos limpando

    • José Carlos Medeiros disse:

      Realmente o Suflair é o problema? Discorreu-se sobre o chocolate, mas muito superficialmente sobre o chocolate que levamos todos os dias da turma de Brasília e de todos os governos. Fácil falar mal de quem não tem opção. Vamos fazer essa pressão toda nos governos… Não vejo isso acontecer..

  11. Bonvart disse:

    Sempre haverá demanda pois o mercado faz propaganda de produtos e os torna necessidade. O próprio mercado gera a demanda dos roubos quando uma pessoa só é feliz em uma sociedade se é próspera, ao mesmo tempo sendo retirada dela a educação e o emprego, e uma vez no emprego conviver com leis trabalhistas terríveis em uma rotina hiper estressante.

  12. Alsir V. Bastos disse:

    Empresário que manipula preços e salários, e que ainda se beneficia de reforma trabalhista – em período de recessão em que os altos preços + desemprego ou perda de poder de compra dos salários – tem os pés lambidos por alguns aqui. Mas pé rapado que recebe mercadoria possivelmente roubada desses empresários e vende mais barato pra essa mesma população trabalhadora com a renda afetada… MEU DEUS QUE ABSURDO!
    Quando se ignora a clivagem de classes e o moralismo é tônica de assuntos sociais mais complexos que a mera opinião de quem não tem tempo de parar para refletir sobre as circunstâncias, temos aí o melhor terreno para esses patrões meterem mais repressão no contexto de acumulação, tão típico desse momento de crise.
    Que esses crimes sejam politizados, que não haja nenhum dano a nenhum motorista de caminhão… e que os empresários sintam um pouquinho (bem pouquinho) do que estão fazendo conosco todos os dias. Nós vamos mesmo aceitar pagar a fatura da crise que eles nos meteram, só na defesa de uma moralismo absoluto e estúpido?

    Gostei desse texto e recomendo (não obrigo ninguém a concordar): http://passapalavra.info/2018/02/118390

  13. Antônio pedro disse:

    É lamentável, pessoal eu ja vendi sufler no semáfaros e sei como funciona, na verdade nem tudo é fruto de roubo, se existe um ou outro que faz isso, ñ deveriamos generalizar, pois muitos pais de familia onestos compram o sufler em grandes docerias, e vendem onestamente, o fato é que, como a chanses de atingir o pulblico em um trem ou em um semafaro é grande as vendas são muitas e o lugro baixo em quantidade alta acaba compensando, porem diante das desconfianças dos flegueses e evitando a compra vai chegar um momento que vender um sufler barato n vai mais compençar…eu mesmo quando vendia custumava apresentar a nota da compra e o valor da cx, e em uma oportunidade espricava para o flegues a origem do meu produto e o porque do preço baixo…

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