Bombas e pavor na infância do Bola de Ouro da Copa

A jornalista Florência Costa em meio à destruição de Zadar, cidade-natal de Modric (Foto Gustavo Nunes Leal)

Jornalista acompanhou a tragédia da guerra nas cidades onde nasceu e cresceu o croata Luka Modric

Por Florência Costa | ODS 8 • Publicada em 15 de julho de 2018 - 20:29 • Atualizada em 16 de julho de 2018 - 01:16

A jornalista Florência Costa em meio à destruição de Zadar, cidade-natal de Modric (Foto Gustavo Nunes Leal)
A jornalista Florência Costa em meio à destruição de Zadar, cidade-natal de Modric (Foto Gustavo Nunes Leal)
A jornalista Florência Costa em meio à destruição de Zadar, cidade-natal de Modric (Foto Gustavo Nunes Leal)

Naquela noite de 2 de maio de 1992, o Bola de Ouro da Copa do Mundo 2018, Luka Modric, então com 6 anos, era uma entre muitas crianças croatas refugiadas na bela cidade de Zadar.

O relógio do saguão do hotel Novi Parki, registrava 20h45. A sirene que fazia disparar o coração da gente era ouvida em toda a cidade – Zadar sempre foi uma das pérolas históricas da região da Dalmácia. O som avisava: procurem seus abrigos antibombas.

Todos corriam de seus quartos para o jardim, do lado de fora. Jatos militares rasgavam o céu. “São os aviões sérvios”, avisou um funcionário do hotel. Idosos e crianças corriam na direção do cassino do hotel, no subsolo. Era o abrigo improvisado.

Destruição diária em Zadar (Foto Florência Costa/2/5/1992)
Destruição diária em Zadar (Foto Florência Costa/2/5/1992)

Lá dentro, sentados em torno de um balcão de bar, os mais velhos, olhares angustiados, ouviam as notícias da guerra, com orelhas grudadas em um rádio. Um senhor enxugava os olhos com um lenço. Uma senhora, vestida de preto, chorava. Outros rezavam.

Adolescentes jogavam cartas para matar o tempo. A noite pode ser longa. As crianças não tinham tempo a perder: brincavam de esconde-esconde entre os móveis do abrigo. Alguns meninos batiam uma bola no pouco espaço do cassino.

A realidade da guerra não é para qualquer um. Bombardeios incessantes castigaram Zadar naqueles anos. Meninos como Modric encontraram refúgio na paixão pela bola e transformaram os estacionamentos dos hotéis em campos de pelada. Era assim que driblavam o pavor das bombas.

Modric nasceu em Zadar, mas cresceu a 40 km dali, no vilarejo de Modrici, encrustrado nas montanhas de Velebit, no norte da Dalmácia. Mas esse menino apaixonado por futebol perdeu sua casa no dia 8 de dezembro de 1991. Foi destruída pelos sérvios. Seu avô foi morto a tiros.

Como é uma infância na guerra? Só sabe quem a viveu. “Foram tempos muito difíceis. Me lembro vividamente. Mas não é algo que você queira lembrar”, disse ele recentemente.

Sem sorriso: Luka Modric recebe a Bola de Ouro após a derrota da Croácia para a França na final (Foto Fifa/AFP)
Da guerra ao pódio: Modric recebe a Bola de Ouro após a derrota da Croácia para a França na final (Foto Fifa/AFP)

O craque da seleção croata, vice-campeã da Copa da Rússia, pertence a uma geração croata que nasceu ou cresceu em meio a bombardeios. Uma geração que aprendeu desde cedo como escapar de granadas e tiros de metralhadoras. Uma geração que aprendeu com seus pais como retomar o jogo quando tudo parece perdido.

Duas horas em abrigos antibomba era uma média normal para aqueles tempos bicudos de ataques diários na Croácia. Um funcionário do hotel Novi Parki conta que em outubro de 1991 ficou seis dias no abrigo. Mas naquele 2 de maio a tensão durou apenas uma hora e vinte minutos.

As guerras acabam se infiltrando no cotidiano das pessoas. Na cidade onde cresceu Modric, mães passeavam com carrinhos de bebês até o final da tarde durante o conflito.

O pôr-do-sol de Zadar –  que nos anos 1960 encantou o mestre do cinema Alfred Hitchcock  (“o mais belo do mundo”) – surgia agourento 30 anos depois: costumava anunciar a chegada das explosões quase diárias.

O ódio étnico rachou famílias e destruiu amizades em ambos os lados da carnificina. Casais servo-croatas se transformavam em inimigos de morte da noite para o dia. Vizinhos se matavam. Crianças rompiam amizades e trocavam socos nas escolas. As relações se desmanchavam.

A cidade parecia uma peneira.  Os poucos prédios de Zadar que ainda tinham vidros estavam protegidos por sacos de areia, alguns com inscrição “Café do Brasil”.

Nos subúrbios, ônibus incinerados, casas em ruínas. Além dos refugiados, tropeçava-se em homens mutilados e jovens de uniformes camuflados que costumavam usar brinquinhos nas orelhas (argolinhas ou bolinhas).

As origens da cidade remontam ao século 9 a.C e seu passado de colônia romana é evidente pelas construções que restaram. Na Segunda Guerra Mundial, nacionalistas croatas aliaram-se a forças nazistas e perseguiram minorias, como os sérvios. Os aliados reagiram com maciços bombardeios: a cidade ficou conhecida como a “Dresden do Adriático”.  

O pontapé inicial do conflito foi em junho de 1991, com a vitória de separatistas croatas em plebiscitos e o anúncio de sua separação da Iugoslávia. O Exército federal, dominado pelos sérvios, invadiu o território croata.  

A História sempre bateu às portas de Zadar de forma impiedosa.

Naquele outono de 1992 relatos dos horrores da guerra – promovidos por sérvios e croatas – assombravam forasteiros que se arriscavam pelos Bálcãs.

O ódio étnico rachou famílias e destruiu amizades em ambos os lados da carnificina. Casais servo-croatas se transformavam em inimigos de morte da noite para o dia. Vizinhos se matavam. Crianças rompiam amizades e trocavam socos nas escolas. As relações se desmanchavam.

O pavor dos viajantes aumentava quando se ouvia histórias de que um bebê havia sido colocado vivo dentro de um forno em algum vilarejo. Estupros, torturas, o horror em carne viva invadia pesadelos de noite.

Uma mulher refugiada lembrou o caso de um rapaz croata que havia reconhecido amigos de infância sérvios, entre seus torturadores.

Uma cozinheira croata que escapou da destruição da belíssima Dubrovnik não sabia dizer quem tinha razão no conflito sangrento.  Só queria viver em paz – suspirava. Sua irmã era casada com um sérvio e estava sendo perseguida pelos croatas: “Nem sei o que é a minha sobrinha”.  

Ela recordou uma notícia de jornal: uma mulher croata decidiu um dia vestir um uniforme militar e esperar o marido sérvio chegar em casa com um rifle na mão. Só não o matou porque o marido não apareceu naquele dia.

A incrível capacidade de resistência levou os croatas até a final da Copa do Mundo. Você tem que entender uma coisa sobre o povo croata. Depois de tudo o que aconteceu, depois da guerra, somos mais fortes, mais duros”, explicou o capitão da seleção croata ao Daily Mail. Não há como negar.

* Florência Costa viajou pela Croácia (Zagreb, Zadar, Split, Rijeca e Dubrovnik) e pela Sérvia (Belgrado) nos meses de abril e maio de 1992

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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