O eu, o aqui e o agora – parte 2

“Over the town”, de Marc Chagall

A obsessão nossa de cada dia pelo que está mais perto de nós (em 6 pinturas)

Por Adriana Barsotti | Artigo • Publicada em 10 de janeiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 10 de janeiro de 2016 - 12:03

“Over the town”, de Marc Chagall
"Geopoliticus child", de Salvador Dalí
“Geopoliticus child”, de Salvador Dalí

1. A foto do corpo do menino sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, estendido na praia de Ali Hoca, em Bodrum, na Turquia, foi a mais emblemática da crise migratória europeia de 2015 (Aylan morreu afogado após um naufrágio quando sua família tentava escapar para a Grécia numa balsa). Entretanto, ela é simbólica de uma mazela muito maior que assola a sociedade contemporânea: nossos sectarismos regionais. Isolados no provincianismo de nossos relacionamentos, sejam eles reais ou virtuais, estamos cada vez menos propensos a nos aproximar do outro – que o digam os países europeus que anunciaram a construção de muros para evitar a entrada de imigrantes. O que mais importa são os laços de proximidade, sejam geográficos ou psicológicos. Buscamos viver em “comunidades”, idealizadas em nosso imaginário como espaços idílicos onde seremos compreendidos e acolhidos. Perseguimos o próximo, o “aqui”, um dos três valores em voga na contemporaneidade (os outros são o “eu”, que já debati por aqui, e o “agora”, sobre o qual falarei em breve).

Girl before a mirror, de Pablo Picasso
Girl before a mirror, de Pablo Picasso

2. No mundo on-line também erguemos muros. Nossos murais são construídos com base em algoritmos que cruzam nossas informações pessoais com nosso comportamento na rede e na web. Dos 1.500 posts elegíveis para aparecerem em nossa linha do tempo diariamente no Facebook, o algoritmo escolhe 300 para serem mostrados. O problema não reside no que nos é exibido, mas no que nos é ocultado. Quanto menos interagirmos com uma pessoa, menos saberemos sobre ela até que desapareça por completo na estreita imensidão do mundo virtual. É bom que se ressalve que “o algoritmo” não é uma entidade maquiavélica e conspiratória, mas fruto das pegadas que deixamos quando curtimos, comentamos e compartilhamos conteúdo. Ele também se alimenta do nosso lado mais egoísta e intolerante: toda vez que ocultamos ou deixamos de seguir alguém, tais informações são valiosamente guardadas. Pessoas que publicaram posts para os quais torcemos o nariz naufragam em nossas timelines. E é assim que a tirania das comunidades vai se revelando.

"A dança", de Matisse
“A dança”, de Matisse

3. Mas por que as comunidades não seriam a proteção ideal para a fuga de todos os males do mundo contemporâneo? Quantos de nós já não ouvimos ou dissemos que “falta calor humano” no mundo? Quantos não acusam nossa sociedade de ser impessoal e fria? Bastante instigante para investigar o tema é a perspectiva do sociólogo inglês Richard Sennett, que desvenda o que para ele é o mito da comunidade. Sennett destrói o que está por trás do que chama de “ideologia da intimidade”, segundo a qual os relacionamentos sociais serão mais autênticos e sinceros tanto mais próximos estiverem das preocupações interiores de cada pessoa. Em “O declínio do homem público”, o autor aponta a armadilha deste mito. Para ele, a “psicologização do mundo” foi fruto do capitalismo. Quanto mais o homem mergulha no universo interior, mais se afasta de suas condições materiais e objetivas. Quanto mais se aproxima do vizinho, mais perde os vínculos com a cidade, com o Estado. A pessoa ocupa o lugar do cidadão. Lançamo-nos numa luta de combate à impessoalidade buscando o “calor humano” perdido. O viver em comunidade se torna o meio possível para alcançá-lo. Na unanimidade de pontos de vista, entretanto, não há espaço para a diferença. “O compartilhar desse eu fica também reduzido a excluir aqueles que são muito diferentes em termos de classe, de política, ou de estilo”, observou ele.

"Warmery summer", de Philip Barlow
“Warmery summer”, de Philip Barlow

4. A “impessoalidade” da cidade faz com que ela seja combatida, afirma Sennett. O mundo exterior, na medida em que não transmite “calor humano”, passa a ser um inimigo a ser exterminado. “Esta nova geografia é a do comunal versus o urbano; o território dos cálidos sentimentos e o território da indiferença impessoal”, nota o sociólogo. Quanto mais se reforçam os laços geográficos e psicológicos, mais distante fica a complexa realidade social. Quanto mais buscam compartilhar o pessoal nas relações sociais, mais distantes os homens estão das possibilidades de ação. O ideal da comunidade anestesia seus membros contra o “indecifrável” mundo lá fora. Em nome de um denominador comum, destroem-se pontos de vista que não levem à convergência de opiniões. Paradoxalmente, é em nome de laços fraternos que se dissolve a fraternidade, sustenta Sennett.
“O declínio do homem público” foi escrito em 1974. A data de publicação revela o quanto foram premonitórias as palavras de Sennett. No mundo real, estamos cercados de sectarismos regionais. Países europeus erguem muros para impedir a entrada de refugiados (como já mencionado acima). O pré-candidato republicano à presidência Donald Trump lançou sua candidatura insultando o México, que seria responsável pela entrada de drogas e “estupradores” nos EUA, e anunciando um plano para erguer um muro na fronteira com aquele país. Na campanha presidencial brasileira de 2014, o ex-secretário nacional de Justiça Romeu Tuma Júnior propôs um muro para separar o Nordeste do Sul e do Sudeste. Isso para falar apenas de iniciativas de concreto e tijolo.

"Afrodite", de Fernando Vicente
“Afrodite”, de Fernando Vicente

5. Mas não são somente as barreiras físicas que nos separam. Ao oferecer o resultado para uma busca, o Google leva em conta 57 itens, tais como o local de onde o acesso foi feito, o navegador que o internauta está usando e os termos que já havia pesquisado anteriormente. Ou seja, não existe uma lista padrão de relevância para os temas, mas uma relação de resultados sob medida para aquele usuário. Foi o que revelou Eli Parisier no livro “O filtro invisível”. Assim, o Google nos oferece um mundo uniforme, de acordo com nossos próprios gostos, reduzindo o espaço para o conhecimento de outros pontos de vista. Da função “perto de você” em nossos smartphones aos posts geolocalizados nas redes sociais, prezamos o que está próximo. Escolhemos o cinema e o restaurante mais perto, fechando-nos cada vez mais em nosso próprio bairro. Pelo celular, podemos saber quais são os amigos que estão geograficamente mais próximos. Resultado: o mundo, aquele tão sectário na vida real, nos parece familiar e uniforme no bairrismo de nossas redes.

"Over the town", de Marc Chagall
“Over the town”, de Marc Chagall

6. Então estamos encurralados em muros físicos e psicológicos? Talvez não. Existem teóricos que pensam diferente, como o antropólogo mexicano Néstor Canclini. Para ele, os movimentos sociais que lutam pela preservação de tradições locais – reforçando as comunidades – refletem uma resistência à globalização e, por isso mesmo, ele vê tais ações com otimismo. Mas ele só chega a esse diagnóstico depois de percorrer um cenário sombrio. Vamos a ele: numa economia globalizada, Canclini acredita que a dimensão socioespacial vem cedendo terreno para o aspecto sociocomunicacional. Nossos hábitos culturais girariam muito mais em torno das mensagens audiovisuais que recebemos do que da produção de bens provenientes da nossa relação com o território. Nas grandes metrópoles, observa ele, a vida social está migrando cada vez mais dos centros históricos para os shoppings, ou seja, dos espaços historicizados para os desterritorializados. E é em meio a esse pessimismo que ele enxerga uma saída. Para combater tais males, a chave seriam os movimentos de reterritorialização, que buscariam resgatar os vínculos perdidos com o território ao afirmarem valores das comunidades locais. Será?

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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