Bela, recatada, do lar… E feminista

A escritora francesa Simone de Beauvoir, símbolo do feminismo

Reação nas redes ao perfil de Marcela Temer é contra misoginia e não menosprezo àquelas que optaram por cuidar da casa

Por Carla Rodrigues | ArtigoODS 5 • Publicada em 20 de abril de 2016 - 15:00 • Atualizada em 5 de setembro de 2017 - 20:46

A escritora francesa Simone de Beauvoir, símbolo do feminismo
A escritora francesa Simone de Beauvoir, símbolo do feminismo
A escritora francesa Simone de Beauvoir, símbolo do feminismo

Bela, recatada e do lar são três atributos tradicionalmente associados ao elemento feminino, esteja este elemento onde estiver. Se for em mulheres, significará beleza física adequada às normas em vigor, sexualidade contida – não apenas em nome da moralidade, mas sobretudo em oposição à sexualidade masculina, esta que não pode ser domada – e confinamento à esfera doméstica, em oposição ao suposto dever dos homens de ocupar o espaço público. Se o elemento feminino estiver em homens, serão apontados como homossexuais (pela beleza e pelo recato) e chamados de fracos por não estarem em posições de comando. Observo a distinção porque o problema que pretendo desenvolver aqui está na classificação do que é essencialmente feminino.

A bem-vinda reação indignada ao perfil da possível primeira-dama, Marcela Temer, elogiada por essas três supostas qualidades, é evidentemente, em primeiro lugar, expressão  contra a misoginia dirigida a presidente Dilma Roussef. Dela, sempre se cobrou beleza, de quem nunca se suportou a participação na luta armada – motivo do inominável elogio ao seu torturador – e, crime maior, sua ascensão ao poder máximo da República.

A indignação que tomou as redes sociais também já causou polêmica em relação ao atributo “do lar”. Existe um grande número de mulheres que se sente justamente ofendida quando mulheres profissionais parecem menosprezar aquelas que optaram por ficar em casa. De fato, há uma leitura equivocada de que os movimentos feministas só respeitam as mulheres públicas, aquelas que trabalham e fizeram uma carreira profissional, as que não são “do lar”.

Permanece, no entanto, o equívoco de que os movimentos feministas menosprezam as mulheres cuja opção de vida foi ficar em casa. Esse engano passa por uma das reivindicações que marcaram os anos 1970: “conquistar um lugar para a mulher”. Tratava-se de um conquistar lugares na esfera pública, até ali bloqueados, impedidos.

Nada mais falso. A confusão, no entanto, me parece proposital, estratégia de um certo discurso conservador que insiste em afirmar – como faz o perfil da sra. Temer – o lar como espaço sagrado e privilegiado para as mulheres e o feminismo como uma “ditadura” do trabalho. Para desfazer a confusão, é preciso pensar que os movimentos feministas começam e se constituem sob a bandeira da emancipação, termo que significa independência, mas principalmente significa pôr as mulheres fora da tutela dos homens. Que isso tenha muitas vezes passado pela necessidade da independência financeira, é uma questão a ser pensada. Para muitas mulheres, a opressão masculina se confirmava na dependência econômica e sair de casa para ganhar o mercado de trabalho, a única forma de liberdade, ainda que paradoxal, já que na profissão muitas vezes fomos (e ainda somos) obrigadas a reproduzir a obediência e subalternidade tida como característica feminina.

Uma das imagens postadas no tumblr "Bela, recatada e do lar": centenas de fotos
Uma das imagens postadas no tumblr “Bela, recatada e do lar”: centenas de fotos

Permanece, no entanto, o equívoco de que os movimentos feministas menosprezam as mulheres cuja opção de vida foi ficar em casa. Esse engano passa por uma das reivindicações que marcaram os anos 1970: “conquistar um lugar para a mulher”. Tratava-se de um conquistar lugares na esfera pública, até ali bloqueados, impedidos. Lugares de poder, de decisão, de comando, que pudesse subverter a perversa associação entre feminino e subalternidade também expressa nos atributos de bela (objeto do prazer masculino), recatada (sexualidade moralmente contida) e do lar (sem ambições que destituam os homens de seus privilégios).

Quem melhor expressa esse equívoco entre a conquista de novos lugares para as mulheres e a fixação de “um lugar” – essencialista, aprisionador – para as mulheres é o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, em entrevista à feminista norte-americana Christie V. Mcdonald (). Quando ela o interroga sobre os lugares das mulheres, ele devolve a pergunta, lembrando um frase discriminatória de uso corrente – “lugar de mulher é na cozinha” – para propor repensar qualquer topografia. “Por que é preciso que haja um lugar para a mulher? E por que apenas um, singular, completamente essencial?”, questiona ele. É contra qualquer essencialismo do feminino, mas com respeito às mulheres que puderam conciliar o lar com a emancipação, que podemos nos insurgir contra as exigências de ser bela, recatada e do lar, que nos levam de volta ao século XVIII e aos piores discursos sobre a essência do feminino.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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