A história só se repete como farsa

Dilma acena para apoiadores após discursar sobre a abertura do processo de impeachment

Numa noite fria de São Paulo, lembranças comparam impeachment de Collor à queda de Dilma

Por Carla Rodrigues | Artigo • Publicada em 12 de maio de 2016 - 15:00 • Atualizada em 13 de maio de 2016 - 00:19

Dilma acena para apoiadores após discursar sobre a abertura do processo de impeachment
Dilma acena para apoiadores após discursar sobre a abertura do processo de impeachment
Dilma acena para apoiadores após discursar sobre a abertura do processo de impeachment

Fui acordada no meio da noite por uma saraivada de fogos, comemoração do impeachment da presidente Dilma Roussef em frente ao prédio da Fiesp. No estado entre sono e vigília, minha memória produziu um conjunto de lembranças que me ajudaram a pensar no impensável da política hoje. Durante o dia, acompanhando a votação no Senado, ouvi um parlamentar dizer: “É a economia, estúpida”. Parafraseava um debate norte-americano em torno da permanência de Bill Clinton no cargo. Na véspera, havia lido o excelente artigo de Mario Sergio Conti  sobre como a história do impeachment começa a ser contada a partir da acusação, por parte do PSBD, de que Dilma, embora eleita por 54 milhões de votos, não tinha legitimidade para governar.

Lembrei então que, quando o ex-presidente Fernando Collor foi eleito, depois de termos passado pelo governo indireto de José Sarney como uma espécie de purgatório a partir do qual enfim se chegaria às eleições diretas para presidente da República, havia esse espírito de uma vitória ilegítima. Afinal, o “caçador de marajás” tinha sido forjado como um avesso do político e, portanto, o avesso de todos aqueles que, à esquerda lutavam por restituir a democracia, à direita lutavam para não perder sua parte no bolo quando a democracia enfim fosse restituída. Montado num jatinho ao lado de um assessor de imprensa, Collor percorrera o país e crescera nas pesquisas, destituindo políticos tradicionais – como Ulisses Guimarães, Leonel Brizola ou Mario Covas – e conquistara um lugar no segundo turno das eleições presidenciais. Brotaria daí e do último debate presidencial promovido pela Rede Globo a ideia de que sua vitória era ilegítima.

Não é por acaso que essas lembranças me vieram numa fria noite paulistana, a uma quadra da sede da Fiesp, na Avenida Paulista. Ali está o fulcro – para usar uma palavra muito repetida pelos senadores em seus discursos – da disputa do poder. Estado mais rico e mais industrializado da federação, concentra os homens brancos que hoje ocupam os ministérios como se fossem os donos do país.

Veio o plano econômico, o ataque à poupança, o desmonte do estado, a abertura às importações, a quebra da indústria nacional, a recessão aguda. Só então vieram as denúncias de corrupção e uma história que me voltou à lembrança durante a noite de ontem, meio dormindo, meio acordada pelo terrível do que o barulho significava: o que se dizia à boca pequena era que Collor cairia não porque roubava, mas porque deixava de fora aqueles que sempre haviam roubado. Pretendeu, portanto, o monopólio da corrupção no Executivo, isso sim inaceitável para os donos do poder, muitos deles hoje no ministério do governo interino de Michel Temer.

Vieram as ruas, os cara-pintadas, as manifestações pró-impeachment, e muitos de nós ainda gostam de acreditar que foram esses movimentos populares que derrubaram o então presidente. Talvez esteja na hora de reconhecer que foi a mesma combinação em jogo hoje: suposição de ilegitimidade, corrupção na mão de poucos, e a economia, claro. Se é possível pensar nesse tripé ontem e hoje, talvez seja também preciso lembrar de como esse tripé se resolveu no governo Itamar Franco.

Parte do PSDB – a mesma parte paulista que hoje está ao lado de Temer –, aceitou cargos, compôs ministérios e fez disso um caminho para chegar ao poder. O presidente Fernando Henrique Cardoso, cujos discursos a favor do impeachment de Dilma foram muito contundentes, foi nomeado ministro das Relações Exteriores (mesmo cargo reservado à Jose Serra no governo Temer), depois ministro da Fazenda, e deve a sua eleição ao Plano Real, ao fim da inflação e à estabilização da economia. Parte do PSDB permaneceu fora do governo Itamar (a mesma parte aliás, que está fora do governo Temer). Legitimidade democrática porque as instituições haviam funcionado e soluções para a economia caminharam juntas, e a corrupção foi varrida para debaixo do tapete.

Dilma não cai pela ilegitimidade, pela economia ou pela corrupção. Isso é só a falsa repetição da estratégia do impeachment anterior. Dilma cai por ser mulher, guerrilheira e honesta, necessariamente nesta ordem.

Não é por acaso que essas lembranças me vieram numa fria noite paulistana, a uma quadra da sede da Fiesp, na Avenida Paulista. Ali está o fulcro – para usar uma palavra muito repetida pelos senadores em seus discursos – da disputa do poder. Estado mais rico e mais industrializado da federação, concentra os homens brancos que hoje ocupam os ministérios como se fossem os donos do país. Ao tomar-se como centro – econômico financeiro e, como se daí decorresse como consequência direta, político –, produzem a falsa percepção de que tudo mais é ilegítimo, num movimento reflexivo e, no entanto, necessário como única forma de apagar a marca de ilegitimidade do governo Temer.

Resta então um elemento novo, a judicialização da política – termo tão importado dos EUA quanto impeachment – , uma das marcas da diferença entre passado, presente e futuro. A sessão do Senado foi aberta com discursos de defesa da presidente Dilma cujos argumentos eram formalidades jurídicas. Foi assim nas falas da senadora Gleisi Hoffman e do senador Lindberg Faria, ambas pontuadas pela estratégia de registrar os elementos que podem vir a ser usados no STF contra a decisão do Senado. Levar a política para os tribunais é esvaziá-la de seu sentido político, ainda que de forma contraditória vá ser preciso argumentar que o impedimento da presidente só se sustenta como decisão política.

Assim, sobra do passado o sonho da Nova República, que a rigor nunca se constituiu enquanto tal; sobra a vida lesada, como descrita pelo filósofo Theodor Adorno na “Mínima Morália”, aquela marcada pelo despertar no momento que poderia ter sido a melhor parte do sonho. A seguir o argumento de que a história só se repete como farsa, Dilma não cai pela ilegitimidade, pela economia ou pela corrupção. Isso é só a falsa repetição da estratégia do impeachment anterior. Dilma cai por ser mulher, guerrilheira e honesta, necessariamente nesta ordem.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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2 comentários “A história só se repete como farsa

  1. Aracy Daher Merchak disse:

    Meus cumprimentos à professora, mestra e doutora Carla Rodrigues pela brilhante exposição dos motivos que levaram o Senado à votar pelo impedimento da grande Presidenta Dilma Rousseff.
    Li e acompanhei a exposição do jurista Marcello Levreve discorrendo sobre os motivos que levaram ao impedimento de Collor, mostrando que nem de longe se compara ao da Presidente Dilma. Daí vemos que o golpe já era enunciado desde o dia seguinte às eleições.
    Mas o que eu quero dizer é que gostei e pude saborear a exposição da professora Carla Rodrigues sobre os motivos que levaram a a este impedimento simplesmente politico e machista: é a nossa Presidenta ser “mulher, guerrilheira e honesta”.
    Pra mim uma frase perfeita pra nossa Presidenta “verás que um filho teu não foge à luta”. Hoje, após o pronunciamento quando foi falar para o povo que estava na saída do Planalto, tive vontade de tira-lá dali ou dizer como se diz a uma criança “engole o choro minha Presidenta” e ela aguentou firme , as vezes com a voz embargada pela emoção , conseguiu engolir o choro…

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