Caixa eletrônico de água

Caixa eletrônico de água-Foto de Florência Costa

Escassez hídrica coloca Índia na liderança do ranking mundial

Por Florência Costa | ODS 11ODS 12ODS 6 • Publicada em 25 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 25 de agosto de 2016 - 13:07

Caixa eletrônico de água-Foto de Florência Costa
Caixa eletrônico de água-Foto de Florência Costa
Caixa eletrônico de água na plataforma de estação de trem da cidade de Lucknow

O motorista do caminhão-pipa do governo estaciona e é imediatamente cercado pelos moradores de Savda Ghevra, um bairro de Nova Delhi onde vivem 7.500 famílias. Eles estão há quatro dias sem fornecimento de água. Confusão, gritos, uns tentam passar por cima dos outros. Ninguém pode se dar o luxo de perder a chance de se abastecer. A questão é: quando virá o próximo?

A realidade de muitos indianos é seca. O país tem o maior contingente de pessoas sem aceso à água potável no mundo: cerca de 77 milhões, segundo a fundação Water Aid.

Mais da metade das casas do país não tem fontes de água, revelou o Censo de 2011. As pessoas são obrigadas a gastar boa parte de seu dia à procura de água. Quando encontram, muitas vezes não é própria para o consumo. Na Índia rural, onde vivem 70% dos 1.2 bilhão de indianos, a situação é mais grave ainda.

Doação de água

Comerciantes deixam potes de água nas ruas no verão para aplacar sede dos pobres - Florência Costa
Comerciantes deixam potes de água nas ruas no verão para aplacar sede dos pobres

Mas eis que de repente você começa a perceber em vários pontos do país a existência de uma espécie de “caixa eletrônica” com filas de pessoas vestidas de forma muito simples, mãos calejadas e rostos ossudos. Não é para tirar dinheiro. São as caixas eletrônicas que vendem água potável a preço muito baixo. É uma iniciativa inovadora que começou a ganhar espaço na Índia.

A pessoa compra crédito em um cartão pré-pago e o escaneia nos “caixas eletrônicos” que liberam a quantidade de água adquirida. O consumidor leva seus recipientes e há lugares, que, por alguns centavos, os higienizam porque muitas vezes eles trazem garrafas ou potes sujos.

A filtragem da água é feita por osmose reversa (RO – Reverse Osmosis). É um método que força a água através de alguns filtros, sendo que um deles é uma membrana semi-permeável que remove de 90% a 98% das impurezas da água da torneira. O resultado é uma água livre de minerais e outros contaminantes como cloro, cloraminas, pesticidas, nitratos, fosfatos e metais pesados. Os contaminantes são maiores que os poros do sistema e por isso não conseguem passar.

Mulheres com cartões de débito da máquina de água
Mulheres e os cartões de débito do caixa eletrônico de água

Os consumidores pagam uma quantia mínima, uma fração do preço comercial da água engarrafada que a maioria não tem condições de comprar. Cada litro custa cerca de 30 centavos de rúpias (um dólar equivale a 66 rúpias) e cada casa tem direito a 20 litros de água por dia.

Em 2008, surgiram as primeiras máquinas, implantadas pela Fundação Piramal, braço filantrópico do Grupo Piramal. Esta instituição criou o projeto Sarvajal , que alcança 300 mil consumidores por dia, com instalações em 12 estados. A ideia fez sucesso e projetos semelhantes, tocados por outras organizações e governos locais, estão sendo implantados pelo país. Um de seus grandes atrativos é a adoção do modelo de franchising que incentiva a economia em favelas e em vilarejos do interior.

Anand Shah, fundador da Sarvajal, que cresceu nos Estados Unidos e se mudou para a Índia para se tornar um empresário da área social, conta que teve de enfrentar os chamados “barões da água”. São os vendedores de água engarrafada que tentam prejudicar a entrada da Sarvajal nos centros urbanos.

Na Índia urbana vivem 30% da população: 100 milhões de indianos vivem em favelas nas grandes cidades e tem mais condições de gastar com água segura do que os indianos das áreas rurais.

Dharamveer Singh, gerente de vendas da Sarvajal, conta que tudo começou com uma iniciativa para melhorar a vida das mulheres. São elas que tradicionalmente carregam por longas distâncias e, diariamente, a água coletada em baldes e vasos de barros pelo interior do país. Assim, o projeto Sarvajal, cujo nome significa “água para todos”, começou a vender água filtrada à domicílio. Era uma forma de dar mais tempo às mulheres para tentar trabalhar ou estudar.

O acesso à água na Índia é um de seus problemas mais graves. Dois terços do território não têm rios perenes. Por isso, 85% dos indianos dependem da água do subsolo como sua principal fonte. Metade desta água está contaminada, segundo o Departamento de Água Subterrânea do governo.

Fila infantil

Crianças no caixa da água
Crianças fazem fila em caixa eletrônico de água

Quase três quartos de todas as doenças do país são provocadas por contaminação da água. Cerca de 1600 pessoas morrem por dia de diarreia causada pelo consumo de água contaminada por dejetos industriais e agrícolas e também pelas péssimas condições sanitárias, segundo o Projeto Sarvajal. As crianças são as vítimas mais frequentes. Nas escolas do interior é comum estudantes levarem água de casa. Isso porque se eles chegam de mãos abanando são obrigados a perdeu aulas para sair em busca de água.

Há vários tipos de contaminação da água. O excesso de flúor, por exemplo, causa vários problemas nos falência de rins e dores nas juntas. Outra forma de contaminação da água do solo é por bactérias (como Escherichia coli, presente nas fezes de humanos e de animais) e por vírus.

O Sarvajal virou um modelo e já ganhou vários prêmios. O projeto não se limita a oferecer água segura e barata. Faz também campanha de conscientização sobre a importância de beber água tratada para evitar estas doenças, muitas vezes fatais e que podem arrasar financeiramente famílias em um país onde a medicina é uma das mais privatizadas do mundo.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

2 comentários “Caixa eletrônico de água

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Excelente a matéria, pois aponta para a delicada questão do custo da água potável no mundo, tanto pelo ponto de vista do valor financeiro, quanto do valor do tempo dispendido para alcança-la e suas implicações com a liberdade para exercer escolhas essenciais ao progresso na vida. Como no Brasil estas dimensões do problema ainda não podem ser contempladas vivemos como se não existissem e, consequentemente, não atentamos para a necessidade de considerá-las nos cuidados com este recurso, mesmo onde é carente. Esta matéria nos amplia o olhar e contribui para que se tenha uma dimensão mais clara das estratégias a serem empregadas com vista a racionalizar e otimizar o uso. Parabéns Florencia!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *