Uma aula de desapego

Em Irache, uma fonte eterna de vinho à disposição do peregrino, bem na beira da estrada

Peregrinos aprendem a compartilhar e a carregar apenas o que é essencial

Por Giovanni Faria | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 15 de julho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:47

Em Irache, uma fonte eterna de vinho à disposição do peregrino, bem na beira da estrada
Em Irache, uma fonte eterna de vinho à disposição do peregrino, bem na beira da estrada
Em Irache, uma fonte eterna de vinho à disposição do peregrino, bem na beira da estrada

Com pão e vinho, se faz o Caminho. A máxima é milenar e traduz com perfeição dois gêneros básicos do peregrino. As extensas plantações de trigo e uva integram a paisagem na região espanhola de Navarra, que se estende pelos primeiros 200 quilômetros de caminhada, entre Roncesvalles e Logroño.

No albergue de Roncesvalles, um dos maiores e melhores do Caminho, o peregrino experimenta o desapego pela primeira vez: há uma grande mesa em que deixam aquilo que está pesando demais em sua mochila. Há centenas de itens, de roupas a secadores de cabelo, passando por livros e produtos de limpeza e higiene.

Desfrutar do pão e do vinho tão abundantes é um dos prazeres do Caminho de Santiago de Compostela. O primeiro, barato e saboroso, se junta a “jamóns” e queijos para ser o alimento mais fácil de consumir durante as longas caminhadas. O segundo é um néctar que atenua as dores no corpo dos peregrinos, desde que bebido em doses moderadas.

Em Irache, o apogeu: há uma fonte eterna de vinho à disposição do peregrino, bem na beira da estrada. Basta abrir a torneira e saborear um tinto frio e encorpado. De graça. Mas tem de beber ali, na hora, não pode levar. É possível comprar um copinho numa máquina eletrônica a 1,5 euro. Não há quem resista.

"O Caminho é o reflexo da vida: devemos ter e viver com pouco", monge irlandês John
“O Caminho é o reflexo da vida: devemos ter e viver com pouco”, monge irlandês John

Nos albergues, ponto de parada para descanso do corpo cansado, a cozinha é sempre o lugar mais agitado. No fim de tarde, início da noite, hora de “inventar” na boca do fogão. É a melhor forma de economizar. Com 5 euros, gastos em pequenos mercados ou “tiendas”, é possível preparar boas saladas e pratos simples como macarronada – os italianos são imbatíveis, claro. Todos compartilham suas criações culinárias, num intercâmbio prazeroso.

– Comprei alface, sardinha e queijo – diz a holandesa Julie – mas ao final comi um belo arroz com frutos do mar feito por japoneses e bebi vinho dos italianos.

Há três tipos de albergues no Caminho: os paroquiais, pertencentes à Igreja, que dão cama e banho em troca de donativos ou cobrança de até 5 euros. Os municipais, propriedade das mais de 130 cidades ao longo do Caminho, costumam cobrar entre 5 e 10 euros. Já os particulares cobram entre 10 e 12 euros.

O conforto, claro, é relativo. Mas depois de 30 quilômetros de estrada todos os dias, uma cama é tudo o que o peregrino quer, além de um banho.

No albergue de Roncesvalles, um dos maiores e melhores do Caminho, o peregrino experimenta o desapego pela primeira vez: há uma grande mesa em que deixam aquilo que está pesando demais em sua mochila. Há centenas de itens, de roupas a secadores de cabelo, passando por livros e produtos de limpeza e higiene.

– Já vi relógios, jóias e bichos de pelúcia – conta a voluntária francesa Marie.

O jovem Nicollás, de 13 anos, que oferece limonada de graça para os peregrinos
O jovem Nicollás, de 13 anos, que oferece limonada de graça para os peregrinos

De fato, o Caminho ensina a só carregar o essencial. O excesso é deixado para trás. Se não quiser abrir mão de nada, há duas saídas: é possível alugar serviço de vans que transportam mochilas de uma cidade a outra ou procurar os Correios e adquirir a caixa-peregrino. Por 4 euros, envia-se para Santiago tudo aquilo que está a passeio nas suas costas.

– O Caminho é o reflexo da vida: devemos ter e viver com pouco – diz o monge irlandês John, com suas vestes longas e negras sob um sol de 35 graus. No Caminho pela segunda vez, busca reafirmar a fé. – É como um upgrade na relação com Deus.

Mesma temperatura escaldante enfrenta o jovem Nicollás, de 13 anos, numa barraquinha em que oferece a todos os peregrinos, de graça, mas à espera de um donativo, limonada gelada numa ladeira na chegada à minúscula cidade de Obaños.

– Faço isso porque eu e minha família sabemos o quanto é importante ajudar os outros.

O Caminho avança e a região de Rioja, o melhor vinho espanhol, se aproxima. E as bolhas nos pés começam a aparecer. Mas isso é assunto para a próxima vez. Até terça. Buen Camino!

Giovanni Faria

É jornalista e trabalhou por 33 anos no jornal O Globo e nas rádios CBN e Globo. É professor da PUC-Rio e da Facha. Também é formado em Direito. Desde que levou um "susto" no coração há quatro anos, adotou a caminhada como atividade diária. Nasceu em Friburgo, mora em Niterói, vive em Búzios, mas desde 2014 não tira o Caminho de Santiago de Compostela da cabeça nem dos pés. A mulher, Christiane, e o filho Thomás já cruzaram a Espanha a pé também - agora só faltam as filhas Victória e Catarina.

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