Toda nudez será recompensada

Na sauna, apenas gente em busca de saúde e sossego. uma profusão de corpos e nenhuma conotação sexual. Foto PATRICK PLEUL / Picture Alliance / DPA

Já imaginou ir a uma sauna com os seus amigos? Todos nus? Tradição alemã rompe construções sociais comuns aos brasileiros

Por Renata Malkes | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 5 de fevereiro de 2017 - 09:56 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:41

Na sauna, apenas gente em busca de saúde e sossego. uma profusão de corpos e nenhuma conotação sexual. Foto PATRICK PLEUL / Picture Alliance / DPA
Na sauna, apenas gente em busca de saúde e sossego. uma profusão de corpos e nenhuma conotação sexual. Foto PATRICK PLEUL / Picture Alliance / DPA
Na sauna, apenas gente em busca de saúde e sossego. uma profusão de corpos e nenhuma conotação sexual. Foto PATRICK PLEUL / Picture Alliance / DPA

Maria Pudica acreditava ser descolada, cabeça aberta, cool e todas as gírias possíveis para designar uma alma libertária. Criada na mais sexy das cidades brasileiras, o Rio de Janeiro, achava sempre muito difícil falar do Brasil aos amigos gringos. Afinal, como explicar o fato de ser aceitável desfilar pelado no carnaval quando um mísero topless na praia constitui crime de ato obsceno, com penas previstas entre três meses e um ano de detenção? Ela, que achava tudo supernatural, nunca ousou mostrar os seios em público. Nem os seios, nem nada mais. Que deus a livre! O biquíni sempre foi comportado e, diga-se, incômodo. A verdade é que expor o corpo nunca fora algo agradável. A pressão gerada pela construção social daquilo que é aceitável nas areias cariocas – bronzeado, sarado, esculpido e torneado – sempre incomodou. Mentia para si mesma, mas Maria Pudica gabava-se de sua alegada modernidade. E tinha orgulho. Estava certa de que rompera, há muito, as amarras da criação judaico-cristã tradicional, para a qual o corpo humano é um grande tabu.

Não consigo entender. Vocês no Brasil fazem todo um caso por causa de um pênis ou de um peito? Mas isso todo mundo tem! Que se dane! Não é nada de extraordinário!

Maria Pudica trocou o calor dos trópicos pelo frio europeu. Achava-se safa, mas não conteve as risadinhas e os olhares curiosos durante o verão na Alemanha, quando centenas de pessoas vão se refrescar em lagos e parques exatamente como vieram ao mundo. Toda aquela liberdade parecia incrível, mas um tanto desconcertante. “Como eles conseguem? Eu não, nem pensar”, imaginava ela. Meses depois, num momento de estresse, nossa heroína recebeu de um amigo, seu melhor amigo e companheiro de apartamento, a proposta que colocaria em xeque todas as neuroses acumuladas em 37 anos de vida. Eis o diálogo:

AMIGO ALEMÃO (AA):  E aí? Menos estressada? Conseguiu dormir?

MARIA PUDICA (MP): Não. Dormi mal outra vez. Exausta.

AA: Você precisa relaxar. Estava pensando… No parque tem umas piscinas térmicas e sauna. É terapêutico e faz bem. Depois você dorme feito um bebê. Vamos?

MP (EMPOLGADÍSSIMA): Claro! Que ótima ideia! Piscina quentinha! Quero!

AA (PREOCUPADO): Mas… Tem certeza? Não sei se você vai querer fazer isso…

MP (INTRIGADA): Ué! Claro! Vamos! Por que não?

AA (SEM GRAÇA): Hmmm… Er… Ah… Você sabe que na Alemanha se vai à sauna nu, né? Só para te avisar. Por isso, pergunto. Não sei se você vai querer… Se não quiser, eu compreendo.

MP (SEGURANDO UM RISO NERVOSO): Hmmm… Ops. Putz. É, né? Já ouvi falar disso… Tinha esquecido… Ai… Meio estranho, né?
AA (COM CARA DE PENA): … … …. …

MP (ENTRE APAVORADA E DECIDIDA): Ok, não me importo. Vamos.

O complexo de saunas é gigantesco e climatizado. Dois andares. Paga-se 17 euros por três horas de uso. Foto de Divulgação
O complexo de saunas é gigantesco e climatizado. Dois andares. Paga-se 17 euros por três horas de uso. Foto de Divulgação

Convite aceito, tudo combinado. E Maria Pudica-já-não-tão-cool-assim, entrou em pânico. Que roubada! Como assim, ficar nua na frente de desconhecidos? E do melhor amigo e companheiro de apartamento, homem? O que fazer? Fingir naturalidade a semana inteira e esquecer. Disfarçar a inquietação. Controlar a vergonha. Lembrar de como sempre militou pela tal da liberdade. Maria Pudica viveu dias de tortura mental. Pensava no amigo. Pensava em si. Pensava “nas partes”. Arrependeu-se trezentas vezes e, claro, pensou em desistir.

Optou, porém, por resistir. Não só na Alemanha, como nos países escandinavos, ir à sauna é parte da cultura local, sobretudo, no inverno. Não raro, funcionários de grandes empresas vão às saunas juntos, relaxar, após um dia de trabalho. Chefes e subordinados igualmente pelados. Os banhos de vapor fazem parte da rotina de muita gente. Os alemães buscam o relaxamento e acreditam no benefício dos choques térmicos para o corpo e a circulação sanguínea. Ficam completamente à vontade para se despir. Qualquer um acha anti-higiênico frequentar saunas com alguma peça de roupa. Afinal, vapor, suor e tecidos são um convite a fungos e, consequentemente, micoses e outras doenças.

Maria Pudica não podia acreditar que estava prestes a ir pela primeira vez a uma sauna pública, mista – com tudo o que isso significa naquelas bandas do planeta, ou seja – com nada. A boca estava seca, o coração palpitava. Repetia para si “em Roma, como os romanos”, “na Alemanha, como os alemães. Apenas relaxe”. Pediu instruções ao amigo, fazendo piadas bestas. “Por favor, me socorre. Preciso que me faça um guia: ‘como ficar nu para idiotas’. O que eu preciso?”. Ele riu e aconselhou a levar duas toalhas (uma para se sentar e outra, limpa, para tomar banho antes de voltar para casa), artigos de higiene pessoal e um chinelo.

O complexo de saunas era gigantesco e climatizado. Dois andares. Paga-se 17 euros por três horas de uso. Maria Pudica tremia sem saber se por conta da neve e do frio de dois graus negativos do lado de fora ou do pavor. Após pagar, ganha-se um relógio com chip e segue-se ao vestiário. Misto, como tudo ali. São centenas de pequenas cabines. Ela entrou em uma, o amigo em outra, ao lado. A primeira gafe: após se libertar dos casacos, gorro, cachecol, veio a dúvida. Era para tirar tudo ali mesmo? O que vinha depois? Ficou parada lá dentro, abobalhada, sem saber o que fazer por alguns minutos. Chamou o amigo pedindo ajuda. Sem resposta. Pudica demorou para entender que a cabine tinha duas saídas e ele a esperava do outro lado, rindo da confusão. Mal-entendido desfeito. Saíram dali vestidos, ele de short; ela de biquíni, em direção aos armários. Pertences guardados. Subiram as escadas rumo à área das saunas. Nas mãos, apenas as duas toalhas e garrafas de água para garantir a hidratação.

Ao chegar ao segundo andar, a novata suava frio. Logo no topo da escada, através de uma porta de vidro, já via crianças, idosos, casais, grupos de amigos e famílias inteiras. Todos nus perambulando naturalmente pelo corredor. Era chegada a hora H. Numa salinha repleta de prateleiras, ela diria adeus a seu comportado biquíni – só não sabia como. Mas o amigo, percebendo a falta de jeito dela, foi rápido e acabou com a expectativa em fração de segundos. Conversando, simplesmente arrancou o short num piscar de olhos. Só restou à Maria Pudica copiar o movimento: ligeira, desamarrou a parte de cima do biquíni e se livrou da parte de baixo sabe-se lá como.

Mais do que peças de tecido, caiam tabus de uma vida inteira. Não houve sequer tempo de sentir vergonha. Bastava olhar ao redor: uma profusão de corpos e nenhuma conotação sexual. E nada de corpos talhados em horas de academia, desses vendidos nas capas de revista. Via-se apenas corpos normais. De todas as formas, cores e tamanhos. Nada de “pepecas”, “piupius”, “bilaus” ou quaisquer gracinhas ou malícias tão comuns ao vocabulário brasileiro. Ali havia apenas gente em busca de saúde e sossego. Ninguém fica olhando para ninguém. E, de repente, Maria Pudica esqueceu-se que estava nua. Num relance, percebeu que estar vestido é que não fazia qualquer sentido. “Por que mesmo é necessário andar vestido?”, questionava ela.

Além das diversas saunas, secas e a vapor de temperaturas distintas, havia duas piscinas: quente e gelada. Além de chuveiros, espreguiçadeiras e, ainda, um terraço para os aventureiros dispostos a encarar o frio do inverno. Na primeira sessão de sauna, após esticarem suas toalhas e deitarem livremente sobre o banco de madeira, o amigo ainda perguntou a Maria Pudica, preocupado: “Está tudo bem?”. Estava tudo ótimo. Eles não só passaram horas circulando entre saunas que variavam de 45 a 90 graus Celsius, piscinas e duchas, como decidiram levar a temperatura do corpo ao extremo. Saíram da área indoor e arriscaram-se a pular numa piscina gelada, ao ar livre, sob a neve, após uma sessão de 20 minutos de sauna e muito suor.  Gargalharam sob a água gélida. Correram para uma piscina quente. Relaxaram. E fizeram tudo de novo.

A cada hora, aprendeu ela, na sauna seca de maior temperatura, vem um funcionário para uma infusão. É o Aufguss: sobre as pedras quentes são colocados extratos de ervas. O funcionário, então, abana uma grande toalha com força para fazer o ar circular perto de cada usuário. A temperatura, já alta, sobe ainda mais em meio ao ar perfumado. Quase um nirvana.

O choque cultural foi substituído apenas pelo choque térmico e por uma indescritível sensação de bem-estar. Tamanhas liberdade e plenitude Maria Pudica jamais sentira. Ela não podia deixar de compartilhar com o amigo os grilos que outrora pululavam em sua cabeça. Contou para o alemão, incrédulo, a diferença brutal com que os dois povos veem e lidam com seus corpos e explicou como, estranhamente, o brasileiro, tão acostumado à pouca roupa graças à temperatura tropical, tende a sexualizar a natureza. “Não consigo entender. Vocês no Brasil fazem todo um caso por causa de um pênis ou de um peito? Mas isso todo mundo tem! Que se dane! Não é nada de extraordinário!”, argumentou ele, com sabedoria.

Pois é. Em tempos de verão no Hemisfério Sul, praia, biquínis, malhação e preparativos neuróticos para o carnaval, Maria, ex-Pudica, percebeu-se cool novamente. Sentiu-se humana. Amou-se. Lembrou que corpos são apenas corpos e compreendeu que aceitar o seu próprio é a mais humana e singela das atitudes. E a mais sustentável. Toda a nudez deveria ser recompensada.

Renata Malkes

Carioca nada da gema, na Alemanha desde 2016. Mestre em Estudos de Paz e Guerra pela Universidade de Magdeburg. Jornalista, inconformista e flamenguista. Mochileira e cervejeira. Ex-correspondente do jornal O Globo no Oriente Médio e da alemã Deutsche Welle no Brasil. Contadora de 'causos', mantém as antenas ligadas em ciência, direitos humanos e política internacional.

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3 comentários “Toda nudez será recompensada

  1. Deborah disse:

    Boa, Renata! Depois de anos morando na Europa — onde a relação com o corpo é outra — tenho exatamente os mesmos questionamentos que você em relação ao tabu brasileiro. .

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