Sarcasmo do século XXI

Gravura do século XIX, coleção privada. Qualquer semelhança é mera coincidência.

A arte de não falar nada pra não estragar tudo

Por Leo Aversa | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 4 de outubro de 2016 - 15:09 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:44

Gravura do século XIX, coleção privada. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Gravura do século XIX, coleção privada. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Gravura do século XIX, coleção privada. Qualquer semelhança é mera coincidência.

Falar o que vem à cabeça. Do meu enorme cardápio de defeitos, este é um dos que me trouxeram mais problemas. Uma coisa é uma pessoa inteligente e esperta falar sem pensar, outra sou eu. O comentário infeliz aparece na minha cabeça já todo errado, além de sujo e torto. Mal olha em volta e sai abrindo caminho para a língua, correndo como alguém de piriri em direção ao banheiro. E assim perco mais um amigo, uma namorada, um parente. Sou um artista do deslize verbal. De tanto receber o conselho, da minha mãe, da minha mulher, até do meu filho de sete anos decidi atender. Como se fosse uma lobotomia, adotei o “Não fala nada para não estragar tudo”.

A vida de bonecão de posto, sem piadinhas, observações metidas a engraçadas, comentários com referências obscuras e críticas aleatórias é de uma felicidade só

Eles venceram.

Vou na festinha infantil, o pai de um amiguinho começa a fazer discurso a favor do Bolsonaro. Fala alto, gesticula com veemência, diz que a esquerda acabou com o país e que só os militares podem consertar a pátria. Em outros tempos eu levantaria o meu braço direito e gritaria Heil Hitler!, dando início a mais uma treta. Voariam cadeiras de plástico e brigadeiros para todo lado, o palhaço tucano iria dar uma voadora na princesa petralha, só sobrariam de pé os traumas nas crianças. Não mais. Agora escuto, esboço um sorriso e não respondo nada. Nadinha. Cara de paisagem. Apenas me encaminho tranquilamente para a mesa de doces. A família olha com satisfação e orgulho.

Estou conversando com um amigo. Chega uma atriz/celebridade/sexsymbol e fala com ele, que nos apresenta: “Essa é fulana”. Nada de comentários “inteligentes”, nada de perguntar se a gente não se conhece de algum lugar, nada de piadas sobre a indústria das celebridades. Apenas esboço o sorriso e ainda pergunto: fulana? E ela, que está em todas as telas e capas, responde: “fulana de tal”. Abdicar das bobagens ainda me dá um ar blasé e cool. Minha vida social está melhorando.

Na reunião de condomínio surge pela milésima vez a discussão sobre o entregador de pizza. Devemos deixar subir ou o morador deve descer? Dando início àquele debate chato e requentado que vai durar horas. Assisto a tudo com um leve sorriso. A época de achar tudo aquilo desesperador e falar isso de maneira irônica e sarcástica – aos meus olhos – ou grosseira e rude – aos olhos de todos os outros – terminaram.

Aparece um post no Facebook de um ativista, reclamando furiosamente dos que são contra a sua causa. Na minha vida anterior, eu explicaria, lenta e pausadamente, que se alguém fosse contra a causa dele não o teria entre os contatos. Também lenta e pausadamente tentaria fazê-lo compreender o significado da expressão “pregar para os convertidos”. Agora eu apenas dou like e ponho carinha feliz.

Na reunião de família a prima surge com o sapato da hora, masculino e prateado, e desfila pela sala como se fosse a Gisele Bündchen. Seria a ocasião em que eu perguntaria se ela estava trabalhando na NASA ou em outra agência espacial. Comentário este que iria iniciar mais uma confusão familiar, com brigas eternas e juras de ódio, mas apenas sorrio e pergunto: “Que lindo! Comprou lá fora?”, reação que provoca júbilo e regozijo em todos os presentes. Finalmente sou convidado para os batizados e casamentos.

A vida de bonecão de posto, sem piadinhas, observações metidas a engraçadas, comentários com referências obscuras e críticas aleatórias é de uma felicidade só. Tá faltando agenda para tanto evento social que sou chamado. Bastou calar a boca para o tapete vermelho se desenrolar.

Estou tão bem que já estabeleci uma nova meta: não só deixar a ironia e o sarcasmo de lado como passar a fazer comentários positivos e encorajadores. Apoiar tudo o que as pessoas disserem.

A autoajuda é o sarcasmo do século XXI

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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3 comentários “Sarcasmo do século XXI

  1. lele disse:

    prefiro sarcasmos a batizados…mas para evitar conflitos, venho investindo no sarcasmo ininteligível, como falar um absurdo ainda maior que a o interlocutor, e ele achar que estou concordando. ps. tem que ser com cara de inocente…

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