Cinquenta e dois quartos e um lar

Parque Nacional da Amazônia, no Pará

Um ano seguindo os caminhos da fotografia, do coração e da saudade

Por Marizilda Cruppe | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 7 de maio de 2016 - 07:23 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:49

Parque Nacional da Amazônia, no Pará
Parque Nacional da Amazônia
Parque Nacional da Amazônia

O pontapé inicial foi dado, não de propósito, no dia do trabalhador do ano passado. Até o primeiro de maio deste ano o balanço foi de 4 países, trinta e uma cidades, 10 estados brasileiros e cinquenta e dois quartos (salas e varandas também) que serviram de lar. Um deles, no sertão de Pernambuco, não foi fotografado por um injusto esquecimento. Nestes doze meses, o mundo virou de cabeça para baixo e virou de novo e novamente. O povo mais miscigenado do planeta foi espremido em três grupos: coxinhas, petralhas e isentões. E o futuro presidente da República, quem diria, pode ser o Lewandowski.

Vi o dia clarear em emergências de hospitais onde cheguei a consolar uma filha cuja mãe eu vi morrer na sala de cirurgia. Não vi o enterro da minha madrinha querida, mas vi os olhos úmidos de um garoto que apagou a primeira vela e teve o primeiro bolo de aniversário aos 21 anos.

Vi muita tristeza em Paris onde cheguei no dia dos atentados e na curva do S onde estive quando os 19 sem-terra assassinados há vinte anos foram lembrados. Vi figueiras e samaúmas de centenas de anos. Vi macacos muriqui e mão de ouro. Vi índios Gavião, Munduruku, Juruna e Guajajara. Não vi mais os pedrais do Xingu, agora submersos pelos canais da Hidrelétrica de Belo Monte. Porém, vi os pedrais do Tapajós, ameaçados pelo projeto de quarenta novas hidrelétricas. Vi os canais de Amsterdã, as pontes do Sena e o encontro do rio com o mar no Delta do Parnaíba. Vi o Cerrado, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica. Os micuins, os carapanãs e as formigas de fogo me viram primeiro. Nada que não pudesse ser tratado por WhatsApp pelo Dr Cravo.

Nova Ipixuna, Pará
Nova Ipixuna, Pará

Vi o dia clarear em emergências de hospitais onde consolei uma filha cuja mãe eu vi morrer na sala de cirurgia. Não vi o enterro da minha madrinha querida, mas vi os olhos úmidos de um garoto que apagou a primeira vela e teve o primeiro bolo de aniversário aos 21 anos. Vi numa universidade o entusiasmo de estudantes que vão fazer o bom Jornalismo sobreviver. Vi a Fotografia cumprir seu papel de linguagem universal para uma plateia igualmente universal na Holanda. Vi uma epidemia de Dengue e uma de Zika. Vi minhas fotos publicadas em dois livros. Vi que eu não pertenço mais ao Rio de Janeiro. Vi que não quero mais ser PJ. Vi também o sorriso dos amigos e das amigas que eu não via há muito tempo.

Vi minhas roupas e sapatos trilharem novos caminhos em bazares e brechós, e nos corpos das amigas e das amigas das amigas. As três malas que há 6 meses pareciam ser apenas suficientes se mostraram um exagero. Vi que é gostoso ter menos. É bom que eu me lembre disso diante da próxima guloseima. As comidas típicas eu não só vi como degustei todas e vi a balança subir 10kg.

Vi a mesma interrogação se repetir no rosto de quem não entende minhas escolhas. Nessas horas eu me lembro do Rafael, que na sabedoria dos seus 8 anos, resumiu assim a minha vida: “A Dindinha é nômade porque os nômades não têm endereço fixo”.

Vou aonde a Fotografia, o coração e a saudade me levarem. Pode ser lá perto das mulheres extrativistas, ou junto dos sem-terra, quem sabe em alguma Unidade de Conservação, aldeia indígena ou seguramente envolvida numa história sobre Justiça Social e Direitos Humanos. Ou ainda com a Victoria, a Bia, o Pedro, o Rafael, o Bruno, o Ilan, a Emilia ou a Gaia. Pode ser na pequenina “Capital do Silêncio”, aos pés das montanhas de pedra da Córdoba argentina, onde não se encontra TV, celular ou internet, mas se vê árvores que quando o vento bate fazem som de mar.

Em qualquer um desses lugares eu me sinto em casa.

Reserva Araribóia, Maranhão
Reserva Araribóia, Maranhão

Marizilda Cruppe

​Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.

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2 comentários “Cinquenta e dois quartos e um lar

  1. fatima buchmann disse:

    QUE MARAVILHA DE ITINERÂNCIA VIVA E VIVIDA!!
    PARABÉNS E MINHA ADMIRAÇÃO PELA CORAGEM DE SEGUIR O DESEJO DE SUA ALMA….ASSIM FEZ MEU FILHO, AO PERCORRER CADA CANTINHO DO NOSSO BRASIL E DEPOIS O S MUNDOS AFORA.
    O FILME DO MEU BIEL COMEÇA AGORA A SER RODADO NA ÁFRICA. A EQUIPE DE 9 PESSOAS EMBARCA NESTA QUARTA, 11 DE MAIO, E PASSAM POR 4 PAÍSES DO LESTE AFRICANO, SEGUINDO A ROTA DO BIEL E ENCONTRANDO OS PERSONAGENS DE SUA TRIP REAL. UM ROAD MOVIE QUE FALA DE SONHOS, IDEAIS, BUSCAS E INTENSAS VIVÊNCIAS.
    VAI CHAMAR-SE GABRIEL E A MONTANHA..
    BEIJO ENORME, DEUS TE PROTEJA E ATÉ QUALQUER HORA.
    QUERO VOCÊ NA ESTREIA!!!

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