Caminhão chinês atropela certezas do futebol

Melhor jogador do último Campeonato Brasileiro, Renato Augusto foi um dos primeiros a aceitar o convite dos chineses: “Não fui eu que escolhi a China, foi a China que me escolheu”

Jogo pesado inclui salários milionários, prêmios por derrota e até nomes de cidade

Por Marcelo Barreto | ArtigoODS 15Vida Sustentável • Publicada em 25 de janeiro de 2016 - 08:37 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:51

Melhor jogador do último Campeonato Brasileiro, Renato Augusto foi um dos primeiros a aceitar o convite dos chineses: “Não fui eu que escolhi a China, foi a China que me escolheu”
Melhor jogador do último Campeonato Brasileiro, Renato Augusto foi um dos primeiros a aceitar o convite dos chineses: "Não fui eu que escolhi a China, foi a China que me escolheu”
Melhor jogador do último Campeonato Brasileiro, Renato Augusto foi um dos primeiros a aceitar o convite dos chineses: “Não fui eu que escolhi a China, foi a China que me escolheu”

Ouvi a frase num programa de rádio, muito provavelmente o “Hora do Expediente”, da CBN. Segundo o locutor, era de um telegrama do prefeito de São Borja a Getúlio Vargas. “Presidente, preciso da vossa ajuda: todo homem tem seu preço e estão chegando no meu”.

Lembro-me dela muitas vezes, quando o debate no Seleção SporTV deriva para os salários dos jogadores de futebol. E passei a usá-la ainda mais nas últimas semanas, quando a China entrou no mercado da bola com o mesmo impacto que causou em outros insumos brasileiros. Uma avalanche que debilitou alguns dos principais clubes do país – notadamente o Corinthians, atual campeão nacional – e ainda não parou. A última proposta, de um time da segunda divisão chinesa pelo jovem Geuvânio, do Santos, é de R$ 133 milhões.

Ao fim de três anos de contrato, é possível voltar para casa com mais de cem milhões de reais intocados e valorizados por aplicações – o suficiente para garantir por duas ou três gerações um dos chavões preferidos no mundo do futebol: a independência financeira.

Sempre achei que a avaliação do futebol como emprego, na imprensa brasileira, sofre de uma distorção social. Nós, jornalistas, somos quase todos da classe média. De um modo geral, nunca nos sobra, mas nunca nos falta. Ao sair da faculdade, temos a perspectiva de uma vida financeira razoavelmente estável até a aposentadoria (ou pelo menos era assim até que nosso mercado implodiu, mas isso é tema para outro artigo). O fato é que ainda hoje é dessa perspectiva que avaliamos as relações trabalhistas dos jogadores com seus clubes. Pensamos em planejamento de carreira. Valorizamos a escolha por critérios técnicos, como a competitividade do campeonato. E acreditamos em benefícios intangíveis, como a possibilidade de chegar à seleção brasileira.

Somos capazes de manter essas convicções mesmo sabendo que 85% dos jogadores profissionais no Brasil ganham até dois salários mínimos. E que os 15% que escapam na direção dos contratos milionários estão sujeitos a todo tipo de pressão para assiná-los: dos empresários, que preferem as constantes trocas de clube para ganhar seu percentual a cada negociação; da família, que projeta neles a possibilidade de ascensão social; e da própria instabilidade da profissão, curta e sujeita a retrações de mercado em caso de queda de produtividade técnica ou física – uma lesão grave pode significar a aposentadoria precoce.

A essa equação, soma-se ainda a visão do torcedor, que enxerga a relação pela ótica da paixão pelo clube. Como diz Ismael ao explicar por que embarcou como marinheiro no baleeiro que perseguiu Moby Dick, existe uma diferença fundamental entre quem paga e quem recebe para exercer uma atividade. E a voz da arquibancada, de quem compra ingressos, camisas oficias e pacotes de pay per view – e que hoje chega pelo Twitter e influencia os debates em tempo real – não tem dúvida: o jogador é um privilegiado por exercer uma atividade que é o sonho da maioria, deveria fazê-lo por amor à camisa e se exige mais dinheiro por isso é um mercenário.

São abordagens aparentemente irreconciliáveis, mas que sempre conviveram em relativa harmonia. Até que o primeiro chinês chegou dirigindo um caminhão de dinheiro, ergueu a caçamba e pareceu soterrar o debate.

“Não fui eu que escolhi a China, foi a China que me escolheu”, disse Renato Augusto, eleito o melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 2015 e um dos primeiros a aceitar uma proposta de transferência. Vai ganhar dois milhões de reais por mês para jogar por três anos por um clube de Pequim. É a versão moderna de “todo homem tem seu preço e estão chegando ao meu”. A frase ficou ainda mais marcante por ter sido dita por um atleta que foge do estereótipo do arrimo de família. Renato veio da classe média carioca e aos 27 anos já tinha a vida resolvida: jogando por um dos clubes mais populares e ricos do país, acabara de voltar à seleção brasileira e rejeitara uma proposta do Shalke 04, da Alemanha.

Propostas milionárias não são novidade no futebol brasileiro. Clubes estrangeiros – primeiro de países com ligas tradicionais, como Espanha, Itália, Inglaterra e Alemanha; depois, de mercados sem tradição no futebol, mas com muito dinheiro: Ucrânia, Rússia, Catar, Emirados Árabes Unidos – sempre buscaram o nosso pé de obra. Mas a China chega com uma volúpia nunca vista. Nem os jornalistas, com sua perspectiva de classe média; nem os torcedores, com sua paixão que ofusca o brilho do vil metal; e nem mesmo os jogadores, com toda a globalização de sua profissão: ninguém jamais teve de raciocinar e tomar decisões diante de tanto dinheiro.

O salário de Renato Augusto não foi o maior oferecido a um jogador brasileiro nesta janela de transferências. Lucas Lima, do Santos, receberia mais de três milhões de reais por mês. E não precisaria tocar nesse dinheiro para viver. Fontes que conhecem o futebol chinês contam que, além de ganhar casa e carro quando chegam ao país, atletas e membros das comissões técnicas recebem prêmios de até 50 mil dólares em dinheiro, no vestiário, após cada vitória. Há times que pagam o chamado bicho até para derrotas. Ao fim de três anos de contrato, é possível voltar para casa com mais de cem milhões de reais intocados e valorizados por aplicações – o suficiente para garantir por duas ou três gerações um dos chavões preferidos no mundo do futebol: a independência financeira.

Pois foi justamente com Lucas Lima que o debate, que parecia soterrado pelo dinheiro do caminhão chinês, tomou um rumo inesperado: ele não aceitou a proposta. Incrédulo, o presidente do clube, que é dono de uma construtora, prometeu que daria o nome do jogador à próxima cidade que inaugurasse (sim, ele constrói cidades inteiras, não apenas casas ou condomínios). Não foi o suficiente. Aos 25 anos, Lucas, convocado pela primeira vez para a seleção em 2015, ainda acredita que pode receber uma boa proposta de um clube europeu. Dificilmente receberá algo parecido. Mas parece ter outros valores em mente.

Planejamento de carreira?

Amor à camisa?

Ou todo homem tem seu preço e ainda vão chegar ao dele?

Não sei. Nunca vi dois ou três milhões de reais na minha vida. Não sei se esse dinheiro cabe numa maleta ou precisa de um caminhão para ser transportado. Não faço ideia do que seja aceitar ou negar ganhar essa grana todo mês, durante três anos. Muito menos do que seria ter uma cidade batizada com meu nome. E não achei na internet um provérbio chinês que pudesse encerrar este texto.

Marcelo Barreto

É jornalista esportivo há 25 anos. Trabalhou nos jornais O Globo e LANCE!, nos sites LANCENET! E Portal dos Esportes e na TV Globo. Desde 2003, está no SporTV, onde atualmente apresenta os programas Seleção SporTV e Troca de Passes.

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